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“A Constituição sou eu”: a pandemia e o acirramento da crise democrática


Ana Victória Machado

Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Pará e integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito – FilPED.

Loiane Prado Verbicaro

Professora da Faculdade de Filosofia e do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenadora do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito – FilPED.

O tema de hoje aborda a pandemia e o acirramento da crise democrática. O Grupo de Pesquisa (CNPq): “Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito”, vinculado à Faculdade de Filosofia e ao Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA), vem estudando, desde 2016, a crise democrática brasileira, com a compreensão de que pode haver o formal funcionamento das instituições democráticas concomitantemente ao desaparecimento da sua dinâmica. Nesse sentido, democracias podem entrar em falência mesmo permanecendo, formalmente, intactas. Motivadas pelo episódio do último domingo, dia 19 de abril, quando, em descumprimento às recomendações das autoridades sanitárias, pessoas reuniram-se (aglomeraram-se) para ato em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, em apoio ao Governo Federal, escrevemos as reflexões a seguir.


Quando, em meio à guerra de combate ao vírus contra o qual nenhum país no mundo está preparado, muito menos o Brasil em razão das suas profundas desigualdades e negligência com a infraestrutura sanitária, um Presidente vai às ruas, contrariando todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), para discursar em ato de apoiadores pró-intervenção militar, marcado por faixas e gritos de volta ao AI5, intervenção militar, fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, é preciso pensar que a pandemia não é a única ameaça a ser enfrentada. Em seu pronunciamento, o Presidente disse acreditar nas reivindicações dos manifestantes que promoviam apologia à ditadura e afronta às instituições democráticas. Dia seguinte, chegou a dizer que é contra o fim da democracia e completou, paradoxalmente, “Eu sou, realmente, a Constituição”, numa versão atualizada do Rei Luís XIV, o Rei-Sol, conhecido pela oração “Je suis la Loi, Je suis l’État; l’État c’est moi” (Eu sou a lei, eu sou o Estado; o Estado sou eu!) em referência à centralização do poder na figura do Rei, no século XVII. A escalada antidemocrática é cada vez mais uma realidade no Brasil. O sinal de alerta da democracia brasileira reluz em vermelho, de modo que a reação à fala do Presidente foi imediata entre os representantes dos poderes e principais instituições do país: além da imprensa, reações do Presidente da OAB, Presidente da Câmara e Deputados da base e oposição, Ministros do STF, Governadores, e Associações de Juízes foram divulgadas nas primeiras horas posteriores ao ato, com discursos alinhados em reação à postura infesta do Presidente de “atiçar grupelhos para atacar a Constituição, as instituições democráticas e o regime democrático” como registra o repúdio de Flávio Dino, Governador do Maranhão.


Com a pandemia do novo coronavírus, conflitos que permeiam os processos de desdemocratização no mundo tem-se intensificado. Se antes desse momento epidêmico, discutia-se inúmeras teses que apontavam para um esvaziamento democrático ou mesmo à insurgência de regimes pós-democrático ou protototalitários, com todos os instrumentos da racionalidade neoliberal, da necropolítica e do autoritarismo, hoje alguns destes questionamentos ganham novos matizes e cores.


Tomando-se como ponto de partida o pensamento de Rubens Casara, que defende ser a sistemática de crises não mais uma excepcionalidade, mas sim um modus operandi do neoliberalismo e do Estado Pós-democrático, pode-se considerar que a crise econômica e sanitária relacionada à pandemia acena, contraintuitivamente, ao fortalecimento da lógica neoliberal, a partir da implementação de uma agenda de austeridade fiscal, reforma administrativa e privatizações para a recomposição dos gastos públicos no momento agudo da crise, com processos mais intensos de flexibilização e relativização de direitos e garantias fundamentais, como os direitos trabalhistas e políticas públicas redistributivas.


Casara, amparado no cientista político Colin Crouch, define o Estado Pós-Democrático como aquele composto pelos seguintes elementos: reaproximação do poder político com o poder econômico, crescimento do autoritarismo, a autoexploração do indivíduo, o desaparecimento das grades institucionais ao exercício do poder e a demonização de políticas participativas e coletivas. Destas características, entende-se que a depender da postura adotada pelos líderes mundiais e pela mobilização social, poderá haver uma intensificação do Estado Pós-Democrático em meio a pandemia e discursos que realçam a priorização da economia, a exemplo da fala do Presidente do Banco Central do Brasil que afirmou, em reunião com investidores do mercado, que “reduzir o número de mortes por Covid-19 pode ser pior para a economia”; da campanha “Milão não pode parar”, apoiada pelo Prefeito de Milão no início da pandemia, posicionamento do qual se arrependeu após a cidade italiana alcançar milhares de mortes pelo Covid-19; do pedido do Presidente Alexander Lukashenko, da Bielorrúsia, para que a polícia secreta procure os “sem vergonha que estão a propagar o pânico”. É dele também a recomendação de combater o vírus com vodka e sauna. Infelizmente não são casos isolados, mas permeiam a opinião de outras autoridades públicas que minimizam a pandemia equiparando-a a uma “gripezinha”, conforme estouvada fala em cadeia nacional do Presidente do Brasil, que insiste em representar o contraexemplo da postura de um estadista preocupado com a centralidade do valor da vida humana; além da classe empresarial e setores que a apoiam, o que, para a autora Wendy Brown (2019, p. 40) representa os reflexos da postura de “consertar o governo por meio de ideias oriundas dos negócios”, isto é, tratar vidas como números, corpos como instrumentos de lucro, marketing, exploração e manipulação.


Na história, observa-se o capitalismo reinventar-se através da superação das periódicas crises que abalam o sistema, até o momento em que o cenário de excepcionalidade passa a constituir a condição de seu fortalecimento, a partir da adoção de medidas de austeridades que converteram-se em um modo de governo (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 7). Nesse sentido, não causa espanto que teóricos como Han (2020, p. 110) sustentem que após a crise, o capitalismo continuará com mais vigor, amparado em regimes cada vez mais autoritários e com amplos mecanismos de controle repressivo por parte dos Estados. Essa situação é potencializada pela circunstância atípica de isolamento, que não apenas enclausura e distancia as pessoas, em uma abdicação a qualquer sentimento de coletividade – já praticamente ausente na lógica neoliberal –, como também robustece o individualismo a partir de uma disputa de todos contra todos pela sua própria sobrevivência.


Por outro lado, algumas premissas características da racionalidade neoliberal, como o obscurantismo, a negação do conhecimento científico e mesmo a figura do homo economicus – empresário de si mesmo –, veem-se questionadas, em especial porque a pandemia mostrou o preço – não apenas monetário – de o mercado primar pelo privado em detrimento do suporte público. A pandemia agudiza a percepção de incompatibilidade de um modelo econométrico com a defesa de uma agenda igualitária e baseada na ampliação da cidadania, que potencializou o desamparo dos mais vulneráveis em razão do esvaziamento dos programas assistenciais e de redistribuição considerados nefastos em “governos de finanças”. Agora, a situação de crise escancara a necessidade de um Estado mais atuante. Essa percepção é defendida inclusive por aqueles que outrora propagavam a nocividade e a demonização do Estado.


A pandemia tem acenado à insustentabilidade da globalização na ausência de uma infraestrutura social de saúde pública, o que passa pela implementação de políticas sociais e pela construção de um projeto político, econômico e social comum. Em razão de seus limites, Žižek (2020, p. 27) defende a ideia segundo a qual a pandemia representa um golpe de morte ao capitalismo. Isso porque o vírus demonstrou que a salvação da humanidade está no poder de solidariedade e colaboração de todos, algo que acena a uma nova era, com a colaboração global na promoção de um processo de regulamentação econômica, em aversão à selvageria do capitalismo, a qual vem mostrando ao mundo que atitudes como as do Presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, em articular o desvio de aparelhos respiradores e máscaras e realizar cortes substanciais das doações, em plena pandemia, a uma entidade tão fundamental como a Organização Mundial da Saúde (OMS), hoje não condizem com as exigências de solidariedade para se ultrapassar uma das maiores crises sanitárias e humanitárias dos últimos tempos.


Percebe-se que não é apenas o sombrio cenário da doença que causa tantas angústias e questionamentos, mas, também, a (in) certeza de que o mundo tal qual era conhecido antes da eclosão do novo coronavírus jamais será o mesmo. Nesse sentido, a atual conjuntura disruptiva aponta para necessidade de uma profunda reflexão, especialmente, para avaliar fenômenos como a intensificação do autoritarismo; a incapacidade de um constitucionalismo nacionalista em responder a tantas questões que extrapolam os limites territoriais do respectivo país; os limites da globalização sem um projeto coletivo de humanidade e solidariedade; os discursos que tentam atenuar as consequências da pandemia em razão dos impactos econômicos; a necropolítica das epidemias que, no Brasil, tem um potencial catastrófico especialmente em relação aos atingidos pelos vários marcadores de opressão; e a desproteção social a partir da priorização às políticas de austeridade fiscal, o que acena a um profundo acirramento da crise das instituições democráticas nesse cenário de excepcionalidade e indeterminação.



REFERÊNCIAS

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática

no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politéia, 2019.

CASARA, Rubens. Estado Pós-Democrático: Neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

CROUCH, Colin. Posdemocracia. Madrid: Taurus, 2004.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

HAN, Byung-Chul. La emergência viral y el mundo de mañana. In: Sopa de Wuhan: Pensamiento Contemporáneo en Tiempos de Pandemias. Buenos Aires: Pablo Amadeu Editor. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.

ZIZEK, Slavoj. El coronavirus es um golpe al capitalismo a lo Kill Bill. In: Sopa de Wuhan: Pensamiento Contemporáneo en Tiempos de Pandemias. Buenos Aires: Pablo Amadeu Editor. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.

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