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A desumanização política de corpos na pandemia


Anna Laura Maneschy Fadel

Doutoranda em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professora do Curso de Direito do Centro Universitário do Pará. Integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito – FilPED.

Loiane Prado Verbicaro

Professora da Faculdade de Filosofia e do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenadora do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito – FilPED.

Dando sequência às reflexões que o Grupo de Pesquisa “Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito” vem fazendo nestes difíceis tempos de pandemia, o tema de hoje discute a desumanização política dos corpos, com inspiração, sobretudo, nos belos textos escritos por Judith Butler, que têm lançado luzes e reflexões sobre a crise que nos assola.

No Brasil, a defesa neoliberal do “salve-se quem puder” e da “justiça de mercado” goza de expressivo prestígio perante a opinião pública na luta contra a politização e a justiça social corretora do mercado. Essa lógica ecoa, em tempos de pandemia, no discurso de racionalidade econômica dos mercados que tem defendido que “pior que o medo da epidemia deve ser o medo do desemprego”, afinal a economia não pode parar, ainda que custe a vida de milhares de indivíduos. A vida humana é instrumentalizada pelas razões de mercado para que a engrenagem não pare. O que está por detrás dessa lógica é que “algumas vidas não importam”, algumas mortes – necessárias ou ocasionais – valem o risco. Como Judith Butler destaca, “há sujeitos que não são exatamente reconhecíveis como sujeitos e há vidas que dificilmente – ou melhor dizendo, nunca – são reconhecidas como vidas” (BUTLER, 2016, p. 17).

A autora norte-americana Judith Butler é um referencial valioso para discutirmos essa questão. A lúcida exposição que está desenvolvendo sobre os impactos da pandemia nos Estados Unidos, além de suas obras “Quadros de Guerra” (2015) e “Vida precária” (2019), podem auxiliar-nos a pensar sobre a nossa realidade, particularmente sobre a apropriação do neoliberalismo aos nossos corpos e a consequente destruição da ética do reconhecimento. Este é o nosso ponto de partida.

Desde “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade” (2015), Butler rompe com a (aparente) cisão entre corpo e mente, relacionando atos discursivos que atravessam e se expressam por meio dos nossos corpos – o corpo é também linguagem. Ao relacionar esta ideia ao modus operandi do neoliberalismo, a autora afirma que este sistema econômico se apropria deles, relegando-os a uma lógica meramente produtiva, destrutiva e desigual (BUTLER, 2016).

Tal sistema produtivo opera-se, segundo Butler, pela intitulada: “ética da violência”, da competitividade, da exclusão, do extermínio. Portanto, não é inesperado que o resultado seja o da desigualdade. Aliada ao populismo conservador, referindo-se à política norte-americana de Donald Trump, a ética da violência transforma-se em um sistema projetado para eliminar muitos e salvaguardar alguns, o que se opõe, diretamente, à igualdade e ao direito de existir desses corpos (BUTLER, 2016).

Em recente entrevista sobre a pandemia mundial, a autora ressalta que, embora o vírus seja capaz de demonstrar como vivemos em uma rede de interpendência e compartilhamento, mostra-nos, de forma mais evidente, as profundas vulnerabilidades que nos desigualam social, política e economicamente. Assim, algumas vidas estão mais suscetíveis à morte, como: a população que não tem acesso à saúde de qualidade – na maioria, negros e pardos –, pessoas pobres, refugiados, pessoas encarceradas, pessoas trans e queer etc. (BUTLER, 2020a). Este é um ponto que não pode ser negligenciado.

Nessa mesma linha, quando Butler (2016), em “Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?”, analisa o conceito de “luto”, em uma retomada da teoria da psicanalista Melanie Klein, discute como há um processo de desumanização política de certos corpos, indicando como a consternação causada por uma perda apenas acontece quando reconhecemos que algo importante foi interrompido, afinal, não choramos por algo sem valor.

Ao resgatar a ética do reconhecimento de Emmanuel Lévinas, Butler (2016), afirma que somente será possível importar-se com a vida do Outro quando há um liame de reconhecimento com o Eu. Isto é, de forma mais clara, a compreensão da igualdade. O fato de se reconhecer alguém como sujeito de direito implica em superar o obstáculo dicotômico do Eu vs. Eles. Ao comentar sobre esta rede de conexão que possuímos socialmente, no texto: “Traços humanos nas superfícies do mundo”, a autora, sensivelmente, afirma que a pandemia tem a capacidade de demonstrar que “as superfícies da vida ensinam aos humanos sobre o mundo que compartilham, insistindo que estamos conectados” (BUTLER, 2020, p. 10).

Entretanto, longe de ser uma análise romantizada da realidade que enfrentamos, Butler denuncia em sua abordagem que enquanto apostarmos em um sistema que se estrutura em privilégios econômicos, sociais, raciais etc., jamais seremos capazes de aprender a lição que está tentando nos ser ensinada. A igualdade é um fim possível, mas não pelos caminhos que estamos adotando.

Os acontecimentos políticos do Brasil têm nos conduzido a descaminhos de difícil reparação e superação. Em recente entrevista, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, ao ser informado sobre a quantidade de mortes no Brasil ter ultrapassado o número da China, reagiu com um infame: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre" (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020). Este não foi o primeiro, e provavelmente não será o último, pronunciamento abjeto do representante do país. Ao reagir de maneira odiosa e ao não tratar o problema com seriedade, o presidente descumpre as regras de decoro e civilidade do cargo que ocupa, acenando para a equação segundo a qual “uns e outros podem até morrer, contanto que a economia permaneça avançando.”

Essa lógica discursiva ecoa em outros seguimentos. O dono do grupo Madero, ao se manifestar contrariamente às medidas de restrição social, afirmou que: “não se pode parar a economia por 5 ou 7 mil mortes”, por considerar que tal atitude impactaria negativamente os setores econômicos. Em outro momento, empresário paulistano que comandou reality show de sucesso na televisão, em vídeo na sua rede social, declarou que “15 mil mortos é um número muito pequeno que justifique parar tudo”. O curioso é o fato do empresário encontrar-se em isolamento na sua fazenda, com toda a sua família. Esse tipo de discurso repete-se em carreatas de apoio ao presidente, que pede a reabertura dos estabelecimentos comerciais e o fim das políticas de isolamento.

Analisando tais manifestações, é perceptível que, para a “elite do atraso”, usando uma expressão de Jessé de Souza, é irrelevante que algumas pessoas morram, pois estas vidas são de menor valor, sua existência é um acaso ou um preço a ser pago diante da crise. Mas desse cômputo estão excluídos, é claro, os seus próprios afetos, os considerados iguais, os que não merecem morrer. Diante desse cenário sombrio, a pergunta que parece estar delineada é a seguinte: “por quais mortes iremos chorar?”, “quais vidas são passíveis de luto”?

Tratando-se sobre igualdade, particularmente em tempos de coronavírus, isto parece estar longe de ser uma possibilidade, ainda mais diante do nosso contexto latinoamericano. A necropolítica, termo utilizado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, mostra-se cada vez mais evidente, como uma verdadeira técnica da morte, dominada pelo Estado, que dita quais serão aqueles que viverão e quais serão deixados a morrer.

Como alega Dennis de Oliveira (2018), ao discutir sobre a realidade da América Latina, as nossas relações sociais foram fundadas pela violência e, portanto, nossas estruturas refletem essa prática. Ao pensamos sobre o Brasil, cuja base econômica e cultural têm origem no colonialismo e escravagismo, – a qual nunca foi de fato rompida –, uma política econômica que explore (literalmente) até a morte e que estabeleça critérios bem demarcados de distinção, esse resultado são “os fantasmas do nosso presente”, como afirma Lilia Schwarcz (2019).

Nos discursos aqui mencionados, vê-se a concretização dessa lógica necropolítica, do “DNA escravocrata” (OLIVEIRA, 2018). Enquanto defendermos um sistema econômico pautado na exclusão e na competitividade, que se fundamenta e reproduz desigualdades, a pandemia do Covid-19 será apenas a responsável por descortinar aquilo que sempre esteve lá: algumas vidas não importam, são impassíveis de luto e não merecem nosso pranto. Ou, como afirma Butler (2018): “matar é o ápice da desigualdade social”.

Para encerrar a reflexão, a nossa luz no fim do túnel, se quisermos seguir com a proposta de Butler, devemos defender que “o corpo implica mortalidade, vulnerabilidade, agência: a pele e a carne nos expõem ao olhar dos outros, mas também ao toque e à violência, e os corpos também ameaçam nos transformar na agência e no instrumento de tudo isso. Embora lutemos por direitos sobre nossos próprios corpos, os próprios corpos pelos quais lutamos não são apenas nossos. O corpo tem sua dimensão invariavelmente pública. Constituído como um fenômeno social na esfera pública, meu corpo é e não é meu”. (BUTLER, 2016, p. 46).

Assim, Butler defende a ideia de “corpo” que não seja entendido exclusivamente como singular, privado, atomizado, mas sim como uma grande e complexa rede de interligações no mundo público: eu só existo porque você (s) existe (m) também. E apenas pelo reconhecimento mútuo se faz igualdade. E, como a própria autora declarou: “o mundo não pode ser reduzido à ‘economia’" (BUTLER, 2020a).

Referências

BUTLER, Judith. Entrevista no Portal Truth Out, 30 de abril de 2020. Judith Butler: Mourning Is a Political Act Amid the Pandemic and Its Disparities. Disponível em: https://truthout.org/articles/judith-butler-mourning-is-a-political-act-amid-the-pandemic-and-its-disparities/. Acesso em: 06 de maio de 2020a.

BUTLER, Judith. Traços humanos nas superfícies do mundo. Tradução de: André Arias e Clara Barzaghi. Disponível em: https://n-1edicoes.org/042. Acesso em: 17 de maio de 2020b.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade - Col. Sujeito & História. 8ª Ed. 2015.

BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Trad. Andreas Lieber. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

FOLHA DE SÃO PAULO. 'E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?', diz Bolsonaro sobre recorde de mortos por coronavírus. Reportagem 28 de abril de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/e-dai-lamento-quer-que-eu-faca-o-que-diz-bolsonaro-sobre-recorde-de-mortos-por-coronavirus.shtml. Acesso em: 02 de maio de 2020.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Artes e Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 123 ‑151, dez. 2016.

OLIVEIRA, Dennis. A violência estrutural na América Latina na lógica do sistema da necropolítica e da colonialidade do poder. Extraprensa: cultura e comunicação na América Latina / Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. – v. 11, n. 2 (jan./jun. 2018) – São Paulo: CELACC-ECA-USP, 2018

SCHWARCZ, Lilia Moritiz. Sobre O Autoritarismo Brasileiro. São Paulo: Companhia Das Letras, 2019.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: Da Escravidão a Bolsonaro. São Paulo: Estação Brasil, 2019.

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