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Histeria, mulher e feminino

Mais do que uma derivação da palavra grega hystero que denota "útero", e que foi utilizada para caracterizar um conjunto de sintomas nas mulheres em diferentes épocas, a Histeria foi um diagnóstico que marcou muito especificamente o nascimento da medicina psiquiátrica como ciência na segunda metade do século XIX e contribuiu ao surgimento da psicanálise no século XX.


Isso se cruza e atravessa a história das mulheres - e também a dos homens- no Ocidente, colaborando para a formação de um modo prescritivo de se ser mulher.


Explora-se a hipótese de que o termo tenha sido alcunhado por Hipócrates na antiguidade grega para referir-se aos males das mulheres, os corporais e também os da alma. O termo e a enfermidade ganharam visibilidade e uso na linguagem, porém, justamente quando a medicina moderna o associa oficialmente a toda uma série de manifestações comportamentais das mulheres europeias e passa a considerar que elas precisavam ser diagnosticadas, tratadas e curadas.


No contexto da neuropsiquiatria e da psicanálise em seus inícios, a Histeria foi uma epidemia dos principais centros urbanos da Europa e se qualificava por uma sintomatologia física e psíquica falsa, já que não correspondia a patologias ou lesões identificáveis nos corpos das enfermas. Vista como uma ilusão ou uma encenação, ainda que não intencional, a Histeria foi elaborada como uma forma de loucura de mulheres, e o interesse em estudá-la e tratá-la apareceu só quando as escolas de neuro-psiquiatria começaram a usar as histéricas como cobaias para suas pesquisas.


É claro que, como as histórias de todas as doenças, a da Histeria envolve múltiplos fatores sócio-econômicos e historiográficos, porém uma das principais razões por ter sido especialmente visibilizada e investigada no final do século XIX foi a instalação de novos mecanismos de controle, modernos e capitalistas, dos corpos das populações urbanas e, nesse caso, dos corpos das mulheres. O controle, o cuidado e a intervenção sobre elas foi fundamental ao processo de organização das sociedades europeias em termos de trabalho, produção e consumo, assim como foi a expansão desse modelo às colônias (como o Brasil), para a consolidação e manutenção dos intercâmbios comerciais globais e do controle do capital em circulação sustentado pela interdependência entre a produção e a exploração dos trabalhadores(as).


Dessa perspectiva, a organização das vidas individuais pelo ritmo do trabalho e as guerras internacionais caracterizavam uma nova ordem político-governamental mundial, cujos controles dos nascimentos e da saúde das crianças era fundamental ao funcionamento dos novos Estados Nacionais de Direito. As políticas estatais ocidentais então passaram de modo mais efetivo a dar atenção, controlar e intervir sobre o corpo de suas mulheres. Como nos conta Silvia Federici, o controle dos corpos das mulheres já era exercido durante séculos nos territórios europeus de origem grego-romana, como nota-se na caça às bruxas e na conceituação da carne e do feminino como o corpo do pecado e a encanação do demônio. Porém, com uma configuração política em Estados-Nação se, fez necessário habilitá-las ao trabalho e treiná-las para serem boas reprodutoras de humanos e ainda aproveitar sua força para a criação dos filhos. Em um nova economia social, já não era possível dar-se ao luxo de exterminar seus corpos, como a queima na fogueira, se exigia então o treinamento de seus corpos e um uso controlado deles.


Seria apressado dizer, contudo, que a Histeria só funcionou como um diagnóstico de controle das mulheres através da intervenção e do etiquetamento delas como "loucas" para retirar-lhes a credibilidade das palavras e, na maioria das vezes, do convívio social, já que a grande maioria acabava internada nos hospitais psiquiátricos europeus. Também seria redutor dizer que as histéricas foram uma invenção premeditada dos representantes do estado e dos médicos para subordiná-las a seus objetivos reprodutivos, comerciais e bélicos. A Histeria foi uma manifestação das mulheres que espetacularizava suas mazelas, e também pode ser lida como sendo uma maneira de expressão e expansão feminina na época, já que além de ser um modo de chamar a atenção para si (como descreve Freud em seus primeiros trabalhos), também era um modo de existir (e talvez resistir) nas fronteiras entre o apagamento total e a possibilidade de serem livres sendo loucas.


Esta tese, apesar de controversa, é instigante. Ela nos é sugerida por Michel Foucault, um homem e um estudioso da loucura, ao entender que na loucura haveria uma espécie de possibilidade de fuga -quiçá não deliberada, mais ainda assim fuga- de tudo o que estrutura as normativas de uma sociedade, de sua discursividade e da padronização das formas de subjetividade. A proposta deve ser avaliada com cuidado e essa é uma das tarefas de meu trabalho como pesquisadora do tema, já que também é preciso não promover com isso o apagamento do sofrimento real vivido pelas histéricas no século XIX e XX. Pensar esta questão, a meu ver, nos habilita a explorar as formas pelas quais a Histeria funcionou como fundamento das normas que regeram as mulheres naquele entre séculos no Ocidente, e também considerar em que medida ainda hoje isso toca nossas normas sociais para as mulheres.


A Histeria funcionou na Europa como norma prescritiva a todas as mulheres pelo via do negativo, já que era o comando de como as mulheres não deviam ser. Do mesmo modo, a doença serviu à desqualificação da liberdade expressiva delas, especialmente em seus comportamentos e em sua linguagem. Quando, por alguma razão, não fosse conveniente o que faziam ou diziam, eram avaliadas e diagnosticadas (por médicos homens e sua ciência) como doentes e passíveis de intervenção e tratamento.


Se gritavam, eram/estavam histéricas; se choravam, eram/estavam histéricas; se se alteravam, eram/estavam histéricas; se mentiam, eram/estavam histéricas, ... Ao mesmo tempo que a Histeria explicava todos esses fenômenos que precisavam ser rejeitados nas mulheres -e também em homens ao qualificá-los de afemininados-, para que a ordem político-social do sistema patriarco-andro-logo-branco-centrado não fosse afetada, também era providencial o uso do diagnostico para desresponsabilizar as mulheres de suas ações e fragilizá-las ou vitimizá-las, excluindo-as assim do protagonismo social, retirando-as da Ágora, mas preservando-as para a maternidade e o trabalho da criação dos filhos.


Neste sentido, a doença (Histeria) e o adjetivo (histérica) persiste para a mulher como uma possibilidade latente e uma ameaça constante de aniquilamento de um estágio ou estado de normalidade presente neste exercício de se ser mulher, e representa a ameaça constante à sua funcionalidade jurídica como sujeito. É claro que o não reconhecimento das mulheres como sujeitos (e sim como objetos) nas sociedades ocidentais não se deve somente à histerização de seus corpos, mas este movimento é significativo na retirada da possibilidade de terem subjetividade e cidadania por meio da atribuição de uma doença. No mesmo sentido, também é significativo o entrelaçamento dos corpos e sua natureza sexual à permissão para o exercício da cidadania, a permissão para possuir bens, e a liberdade de ação e deliberação.


Neste sentido, a Histeria constituiu o feminino enquanto imagem e moldura (frame) das mulheres no Ocidente. Como negativo de uma representação a ser reforçada, a Histeria demarca as bordas do normal e contorna a imagem da mulher certa, sã,correta. Marca assim a fronteira que regulou os modos pelos quais todas as mulheres deviam ser/existir e os pelos quais elas deviam agir para não deixarem de ser mulheres, e para jamais se tornarem histéricas.


Apesar da perspectiva psicanalítica atual dispensar esta oposição entre normal e patológico e de também já não utilizar o termo para seus diagnósticos, a dicotomia se preserva na linguagem médica e na político-científica dos meios jornalísticos. No início do século XX a Histeria esteve presente nas enciclopédias, nos manuais de puericultura e de obstetrícia, nas representações do feminino e das doenças de mulheres que apesar de não ter organicidade, era atribuída ao gênero.


Ao deixar de ser doença, tendo a medicina e a psicanálise redirecionado seus sintomas a outras palavras classificatórias e ordenamentos da psique, a palavra pesistiu como adjetivo atribuível a todos os humanos, mas sua significância se manteve atrelada ao feminino. Na linguagem cotidiana, a palavra seguiu referindo-se à loucura, à mentira, à alteração, à irracionalidade e ao exagero do feminino. O diagnóstico se manteve, portanto, como marcador científico-moral das narrativas que começaram a usa o gênero feminino como elemento de valoração e desqualificação das atitudes.


Daí, falar em uma normatividade contra-histérica como inerente à normativa de gênero e a própria heterossexualidade parece fazer todo sentido, já que na medida em que é um marcador da negatividade, do erro ou da falha do feminino, também é um enquadramento normativo positivo do gênero e delimitador de um tipo de performance do feminino como sendo a correta, a aceitável, e a verdadeira.


A Histeria assim, continua a condensar a contrariedade que devém parte constitutiva da mulher e que rege as vivências do gênero feminino. Elisabeth Roudinesco, em sua história da psicanálise, enfatiza este aspecto quando nos recorda que o termo foi excessivamente utilizado pelos jornalistas da década de 60 na França para qualificar os movimentos sociais, especialmente os de maio de 1968.

Este uso, ainda recorrente atualmente —inclusive agora em 2020 no contexto da pandemia de coronavírus e em falas que qualificam o medo ao contágio e as medidas de isolamento como Histeria —, revela como o termo mantém sua função de nomear o insano em contraposição ao normal, ao coerente e ao saudável, e contribui, assim, para o estabelecimento de uma hierarquia constitutiva da relação entre masculino e feminino. Nessa hierarquia, o insano é algo do feminino, e isso se exemplifica perfeitamente nestes discursos onde se desqualificam gestos e palavras ao feminilizá-las. Em outras palavras, ao chamar algo de histérico, se faz uso do feminino para reprovar, se feminiza para desqualificar e desvalorizar.


Portanto, a proposta de meus estudos e pesquisa em torno da Histeria atualmente — realizo um pós-doutorado sobre o tema na UERJ [e sem financiamento algum até o momento] — partem da ideia de que é preciso inverter essas narrativas. A inversão, por um lado, deve se dar na pergunta: e se as histéricas constassem a sua história? o que nos contariam?


Por outro lado, a inversão deve buscar pontos de convergência ou nós que elucidam esta narrativa binária e da separação hierárquica entre os gêneros, de modo a ilustrar como uma desubjetivação (ou abjeção) de algumas pessoas, neste caso as mulheres, acontece através de uma séria de relações, onde a generificação dos corpos e a patologização dos comportamentos tem um papel primordial e decisivo.


Por outro lado, ainda, a inversão deve buscar evidências de como as próprias narrativas oficiais, científicas e/ou midiáticas, seriam reveladoras de um movimento no pensamento ocidente e de projetos políticos-teóricos ocidentais (e também em nações ocidentalizadas, como o Brasil) que ao feminizarem certas performances de existência as desativam e as inabilitam.


Recentemente vimos surgir um slogan “históricas e não histéricas”, para negar essa desqualificação pelo diagnóstico associado ao gênero. Não obstante, negar a Histeria como constitutiva do feminino é também reforçar a prescrição negativa de nossos modos de ser mulher. Assim, a proposta e a estratégia teórico-política que apresento é a da apropriação e ressignificação do termo, já não para excluir a Histeria do ser mulher, mas para resignificá-la.


Proponho a reivindicação da Histeria como imagem de autenticidade feminina e como inversão de valores associados às mulheres por meio, justamente, da atualização do termo. Entendo que negar a Histeria, negar que somos ou podermos vir a ser histéricas, é reforçar a oposição entre uma normalidade e uma anormalidade feminina, e também a hierarquização entre feminino e masculino. Então, nos auto-proclamarmos histéricas e passarmos a habitar o feminino por essa imagem re-enquadrada pode [a meu ver, a partir de minhas pesquisas] ser uma maneira de se re-articular e se (re)presentar o feminino.

Viviane Bagiotto Botton é doutora em filosofia pela Facultad de Filosofia y letras da UNAM_ Universidad Nacional Autónoma de México; faz pós-doutorado em filosofia na UERJ_ Universidade do Estado do Rio de Janeiro; e atualmente desenvolve pesquisa sobre a Histeria no Brasil e as nuances desses diagnóstico de gênero na história da psiquiatria nacional, assim como está envolvida com os estudos de gênero e colonialidade a partir das perspectiva do sul global__ Participa da Rede Brasileira de Mulheres filósofas junto ao projeto ​NÚCLEO DE ESTUDOS SOBRE A HISTERIA

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