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Nísia Floresta em Bayreuth

Atualizado: 7 de dez. de 2019

Entre os dias 02 e 03 de dezembro ocorreu, na Universidade de Bayreuth/Alemanha, a primeira Conferência Mulheres na Filosofia Bayreuth.


Organizado pela Professora (brasileira) Alice Pinheiro Walla e pela doutoranda (também brasileira) Maria Eugênia Zanchet, o evento contou com a presença de oito palestrantes de cinco nacionalidades (Alemanha, Brasil, Índia, Inglaterra e Irã) e de várias instituições distintas. O público esteve composto essencialmente por estudantes de filosofia da universidade anfitriã, mas também de colegas e estudantes de outros departamentos (como Geografia e Ciências Sociais).


Apesar de ser nomeado como Conferência, o evento fluiu muito mais como um Workshop, pois boa parte das apresentações foram de verdadeiros trabalhos em andamento, seguidas de discussões intensas e construtivas.


A apresentação de Tanu Biswass foi, nesse sentido, emblemática: sua palestra ocorreu um dia antes de sua banca de doutorado. O título da apresentação de Tanu é, em livre tradução, "Ideias Infantistas para uma Pedagogia da Filosofia em um Mundo Superaquecido" [Childist Ideas for a Pedagogy of Philosophy in an Overheated World]. A partir de um referencial metodológico inspirado na tradição fenomenológica, bem como em reflexões sobre o antropoceno neoliberal, Tanu mostrou como um determinado tipo de atividade filosófica com/para crianças pode ser não apenas uma maneira de ensinar-lhes a brincar com conceitos, mas (de modo talvez mais importante), de nos ensinar, aos adultos filosofantes, como fazer de nossas práticas filosóficas (mas não apenas) algo menos pesado e acelerado. Mais valioso para o mundo que estamos deixando para as crianças, um mundo superaquecido. No dia seguinte, quando a defesa já havia terminado, Tanu contou que sabe um pouco da nossa língua (ela havia usado a palavra brincar em português na apresentação do dia anterior, o que havia me deixado curiosa), e que os trabalhos de nosso colega Walter Kohan sobre filosofia e infância foram importantes em seu percurso de pesquisa.


Outras apresentações de work-in-progress que merecem ser destacadas foram as de Shirin Assa, doutoranda da Faculdade de Línguas e Literatura que falou sobre Resistência Interseccional, e a de Sophie-Grace Chappell, professora da Universidade Aberta do Reino Unido, que nos presenteou com uma performance sutil e provocadora, lendo trechos dos capítulos sete e oito do livro que está em fase de finalização, Epifanias. Sophie-Grace criticou forte e tenazmente as teorias éticas e meta-éticas contemporâneas por não darem conta da dimensão concreta e comum dos valores morais na vida humana, oferecendo uma abordagem - seu socialismo desenvolvimentista-psicológico - baseado no que os bebês podem nos ensinar quanto à primazia de qualidades (e valores) complexos sobre o que filósofos como Hume e Locke consideram como os tijolos de nossa percepção, as qualidades primárias. A palestra de Sophie-Grace foi uma verdadeira aula de como fazer filosofia sem usar antolhos categoriais (filosofia analítica versus continental e outros quetais), e sem pretender fazer teoria filosófica, mas esclarecer conceitos que determinam nossas mais valiosas experiências como seres humanos.


Todas as palestras foram bastante diversas, e mais ou menos complementares entre si. Estivemos discutindo sexismo e desrespeito (com Christine Bratu), direitos indígenas (com Kerstin Reibold), o alegado sentido moral do ressentiment (com outra filósofa brasileira, Christine Lopes), e ainda sobre como se sentir com relação a assim chamada inteligência artificial emocional (com Eva Weber-Guskar).


A participação mais abrasileirada do evento foi a da que vos escreve - um trabalho em andamento, continuação da colaboração com Nastassja Pugliese sobre ensino de lógica, acerca da, ou com a, filosofia de Nísia Floresta. A ideia principal é combinar nossos esforços em favor de uma didática mínima da lógica para estudantes de filosofia com outros esforços, os de incluir tópicos de história da filosofia em aulas introdutórias de lógica, mais especialmente textos de autoras obliteradas do cânone que nos é transmitido na escolas e universidades.


Com relação ao último ponto, não deveria ser novidade para a audiência deste site que passa da hora de nos dedicarmos ao resgate das mulheres que fizeram filosofia ao longo da história do Brasil, sendo Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885) um nome inultrapassável.


A despeito da confusão em torno de seu primeiro escrito (publicado em 1832 como uma livre tradução de Reivindicação dos direitos das mulheres, de Mary Wollstonecraft), não há muito o que duvidar sobre Floresta ser a precursora da literatura sobre os direitos das mulheres em nosso país, tendo:


• publicado mais de 15 livros (em quatro idiomas) versando sobre os assuntos mais prementes de seu tempo (a educação das mulheres em diferentes momentos históricos e regiões do mundo, seu papel na sociedade, a situação indígena, o papel do nacionalismo no desenvolvimento das civilizações, a escravidão, a função da religião e da moral na educação, dentro outros);

• fundado e dirigido um colégio com currículo liberal para meninas no Rio de Janeiro;

• se correspondido e ter se tornado amiga de Auguste Comte;

• influenciado o desenvolvimento de um imaginário mais favorável aos direitos das mulheres no país, e muito provavelmente outras escritoras, como Ana de Barandas.


Minha contribuição ao evento foi dividida em quatro partes: uma primeira com notas biográficas (sintetizadas a partir da leitura de sua mais completa biografia, escrita pela professora Constância Lima Duarte, e cotejadas com as de Adauto Câmara e Maria Simonetti Gadêlha Grilo); uma segunda parte na qual expus os aspectos filosóficos - temas e problemas - da obra de nossa precursora; na terceira foquei na filosofia da educação da "primeira Nísia" (1832-1853), e por fim propus algumas questões para seguir a conversa. A mais importante de todas, nesse momento da pesquisa, diz respeito aos critérios que se podem exigir de uma obra para que seja considerada filosófica, em especial de como a obra de juventude de Nísia satisfaz tais critérios.


A literatura secundária não é muito abundante diante dessa questão (vide Hammond-Mathews 2012, por exemplo), muito embora um passo importante tenha sido recentemente dado pelo Professor Paulo Marguti com seu Nísia Floresta, uma brasileira desconhecida: feminismo, positivismo e outras tendências (2019).


A reescrita do cânone desde o ponto de vista das mulheres filósofas é uma tarefa complexa e cheia de desafios metodológicos e históricos, em especial para o caso de autoras brasileiras e latino-americanas, como já mostrou Ana Miriam Wuensch.


Nesse sentido, o resgate dos aspectos filosóficos da obra de Nísia Floresta é indispensável, um trabalho que merece muita atenção e dedicação (um grupo de pesquisa não cairia mal) e para o qual, de nossa parte, estamos colaborando com uma singela fração: mapeando os argumentos que nos permitirão auscultar seus textos didático-filosóficos com o diapasão adequado à sua natureza e finalidade.


Uma das perguntas que me dirigiam em Bayreuth foi sobre a existência de traduções da obra de Floresta para o inglês - estavam todos muito curiosos, querendo saber mais e mais sobre tão interessante desconhecida. Minha resposta foi simples e algo melancólica: pois somente um de seus escritos está disponível na língua de Wollstonecraft (Woman, traduzido do italiano por sua filha Lívia Augusta de Faria Rocha). Mas do que isso, em nossa língua mãe nem sequer temos ainda reunidas as obras completas daquela que talvez possa ser pleiteada como nossa primeira filósofa. E talvez feminista.




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