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Às filósofas que não são mulheres, ou sobre “A vida invisível” de Karim Aïnouz

Atualizado: 8 de dez. de 2019



Uma colega filósofa se candidatava a uma posição de prestígio nunca antes ocupada por uma mulher. Quando perguntada sobre a importância de ter uma mulher nesse cargo, ela respondeu: “O importante é o trabalho sério, que eu seja uma mulher é um acidente”. Um acidente, nos ensina Aristóteles, é um atributo que não modifica a essência. Minha colega aristotélica entende que somos essencialmente seres humanos, capazes de filosofar e de encontrar a felicidade nessa atividade; ser mulher não modifica isso.


Uma outra colega, ao defender que não era necessária a presença de um membro feminino em uma comissão avaliativa, argumentou dizendo: “na razão pura somos todos iguais”.  A tese de Kant iguala os seres humanos pela presença de uma racionalidade que tanto limita o modo como conhecemos o mundo, quanto nos marca essencialmente por nossa liberdade. A ideia dela era de que, sendo os avaliadores tanto especialistas na matéria quanto agentes morais, o gênero não faria diferença no seu julgamento.


Há nessas atitudes um elemento que diz respeito à dignidade humana, à nossa felicidade, à virtude, à liberdade e à filosofia. Isso é algo de que eu jamais abriria mão e de que ninguém deveria abrir mão. Mas há também um abismo entre o que esses valores expressam e o problema circunstancial que eles foram chamados a resolver. Qual é o lugar de ser mulher quando se trata do uso das nossas faculdades intelectuais? Que diferença faz para uma filósofa se ela é mulher?


Karim Aïnouz faz Eurídice Gusmão justificar a sua relação com o piano dizendo: “quando eu toco, eu desapareço”. Quem desaparece no ato de tocar é a filha de seu Manuel e dona Ana, a mãe de Cecília, a esposa de Antenor. Com essas versões dela mesma vão-se todos os deveres que recaem sobre Eurídice pelo fato de ela ser a pessoa que é. O que fica no lugar deles é a sua essência, a liberdade, a felicidade. Ao fazer sua personagem explicar seu desaparecimento, Aïnouz vai muito além do romance de Martha Batalha no qual baseia seu filme. No romance, Eurídice foi frustrada em seu potencial: ela calcularia pontes, inventaria vacinas, escreveria clássicos, se assim lhe fosse dado. Essa Eurídice não chega perto da que vemos no filme, aquela que experimenta o “desaparecimento”, cujos dedos não conseguem parar de tocar, e que sabe muito bem quem ela é.


Mas o filme de Aïnouz jamais se chamaria “A Vida Invisível” por essa grande experiência. A invisibilidade de Eurídice é a força contrária ao seu desaparecimento, é aquilo que o impede. Invisibilidade é o que faz com que ela apareça de um determinado modo, do modo ordinário, banal, que sobretudo as mulheres ocupam quando assumem como eixo central da sua existência o cuidado com os outros. Nancy Fraser relaciona esse tipo cuidado à função social da reprodução, historicamente atribuída às mulheres. Fraser insiste muito no fato de que o capitalismo se nega a remunerar o trabalho associado à reprodução (em última análise seríamos incapazes de arcar com tais custos) e por isso opera sistematicamente de modo a torná-lo invisível.


O romance de Batalha levou essa invisibilidade à sua hipérbole: seu drama não é apenas que o trabalho do cuidado é invisível; é que ele nos torna invisíveis. Ele transforma a nossa vida na vida dos outros. Mas também quanto a esse ponto Aïnouz dá um passo à frente do romance. Enquanto Batalha faz questão de frisar o passado, e de dizer que essa é a vida das nossas avós, o filme de Aïnouz nos joga Eurídice na cara: ela ainda não passou. A invisibilidade de Eurídice é ainda a invisibilidade de muitos, de muitas. Isso porque a Eurídice do filme não é o potencial fracassado pela falta de oportunidade. Sua invisibilidade a vence no auge da sua conquista e da sua certeza de si mesma. Sua invisibilidade, paradoxalmente, é uma escolha. Mas que tipo de escolha? Certamente esse não é um ato imoral. Porém tampouco é simples encaixá-la em um ato que se conformaria às normas do imperativo moral. Ainda que uma ação pelo dever, ela se configura como um ato contra si própria cuja universalização não pode ser justificável, a não ser que...


A não ser que ser mulher não seja um acidente, que seja uma propriedade que altera o que somos porque nos coloca em uma circunstância em que as capacidades que nos igualariam aos seres humanos simplesmente não podem ser desenvolvidas. Não podem, não por uma questão natural ou intrínseca a nós mesmas, mas porque o exercício de tais capacidades demanda um tempo que não temos por causa dos outros. A escolha de Eurídice é muito mais complexa do que essa versão simplificada que apresento aqui. Mas a versão simplificada me basta para contrastar o desaparecimento e a invisibilidade na minha resposta às minhas colegas.


Aristóteles e Kant falharam sobre as mulheres, isso é fato comprovado pelos seus textos. Mas isso não é razão para que sejam desmerecidos, afinal eles formularam de modo lapidar o valor inviolável da virtude e da liberdade. Juntos esses dois fatores mostram como a invisibilidade de Eurídice é uma questão filosófica. Filosófica porque não vemos a invisibilidade dos outros. Filosófica porque a nossa própria invisibilidade nos causa tamanho amargor que preferimos não a ver. Do amargor Batalha diz: “E foi assim que concluiu que não deveria pensar”.


O lugar de ser mulher quando se trata do uso das nossas faculdades intelectuais é a concorrência entre o cuidado de si e o cuidado dos outros, entre o desaparecimento e a invisibilidade. Porque elas vivem neste tempo e neste espaço, as filósofas têm que se posicionar em relação a essa concorrência. Muitas foram as que, na coragem por defender seu desaparecimento, rejeitaram totalmente a invisibilidade e os papeis sociais do cuidado dos outros, assumindo uma androginia que parece se encaixar bem na prática da razão pura. Elas tomam a posição libertária e igualitária – são iguais aos homens na sua opção – e rejeitam os deveres que as tornam invisíveis. O problema dessa posição é que a pretensão de sua universalidade levaria ao desaparecimento da espécie humana, cuja existência requer cuidados sobretudo na sua primeira e terceira idades. Isso quer dizer que, como mostrou Fraser, essa posição se compromete com a delegação das funções de cuidado – em geral transferidas a mulheres de classes sociais mais baixas, de raças e etnias minoritárias – e consequentemente com a manutenção da invisibilidade alheia.


Outras filósofas enfrentaram o desafio de dividir seu tempo entre o cuidado de si e o dos outros. Persuadidas do argumento sobre a universalidade da virtude e da atividade natural,  elas não admitem que ser mulher faça diferença na prática filosófica, e com isso vivem duas vidas. A questão é que o tempo unifica a nossa existência em uma sequência causal única e dividir-se é um modo de não estar plenamente em nenhuma das alternativas. Nesse cabo de guerra cotidiano, elas dificilmente escapam do amargor. No escuro do quarto, lamentam-se e inferiorizam-se, seja por não cuidarem dos outros como deveriam, seja por não brilharem como deveriam.


Dessas filósofas mulheres, algumas repetem a escolha de Eurídice: abandonam a filosofia, tornam-se totalmente invisíveis e adicionam mais um caso na dura estatística da diminuição do número de filósofas em nossas instituições e em nossas estantes. Outras dentre essas insistem, esforçam-se por se contentar com níveis de produção e reconhecimento mais tímidos que os das suas contrapartes masculinas ou que os daquelas colegas que optaram por não se dividir. Elas engrossam as estatísticas que parecem confirmar a posição dos filósofos de que as mulheres não são assim tão aptas ao exercício filosófico.


Há um outro caminho, aquele que torna a invisibilidade visível. Para tratar dele, Aïnouz optou abrir mão de sua preferência por uma estética não narrativa e explorar o gênero do melodrama. Mas eu creio que é possível mostrar a invisibilidade por argumentos. A investigação filosófica pode prestar-se bem a explorar a força dos papeis sociais na constituição da moralidade, da liberdade e da virtude. Talvez ela já tenha inclusive se defrontado com esse desafio. A tese socrática da unidade das virtudes e de que o cuidado dos outros depende do cuidado de si pode ter sido uma tentativa de iluminar a virtude invisível da sophrosune. Mas muitos outros caminhos estão se abrindo, caminhos abertos por filósofas que hoje se entendem mulheres e que reivindicam uma epistemologia, uma teoria moral ou uma filosofia política que expliquem a “Vida Invisível”.


Hoje, 27 de novembro de 2019, é lançada a Rede Brasileira de Mulheres Filósofas. As duas últimas palavras desse título não são redundantes. Elas ressaltam o trajeto tortuoso das filósofas que chegaram às nossas estantes.  Elas propõem uma questão verdadeiramente filosófica sobre os limites de nossa liberdade. E eu gostaria que elas convidassem as duas colegas que mencionei – e muitas outras que com elas se identifiquem – a uma auto-investigação e a uma atenção às suas práticas cotidianas de exercício da filosofia. Ainda que elas se sintam confortáveis nas suas conquistas, talvez possam pensar em suas alunas, e na chance de que elas possam repetir a escolha de Eurídice Gusmão.



Carolina Araújo, UFRJ


@FilosofasOrg


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