Juliana de Moraes Monteiro
Doutora em Filosofia pela PUC-Rio. Atualmente, é bolsista nota 10 da FAPERJ, realizando Pós-doutorado em Filosofia sob a supervisão da Profa. Dra. Carla Rodrigues na UFRJ.
As imagens dos caixões empilhados, das valas funerárias e as notícias de milhares de mortos sem direito a qualquer rito funerário que inundaram os noticiários, jornais e redes sociais durante a pandemia causada pelo Covid-19 impactaram sensivelmente os espectadores ao redor do mundo. A hipótese que elaboro aqui busca responder ao efeito dessas imagens: nessa leitura, proponho pensar que elas não nos atingem simplesmente porque revelam os acontecimentos do presente conferindo-lhes uma visão recortada de uma realidade catastrófica.
Ao contrário, o que há de angustiante nessas imagens é que nelas se inscrevem coisas impossíveis de dizer. Um excesso, algo em torno do qual a linguagem orbita, sem nunca conseguir enunciar totalmente, como uma falha alocada no cerne de sua formação. São imagens que podemos nomear como traumáticas, justamente porque apontam diretamente para o real, e o real vem para nos afetar de maneira mais cruel do que a própria realidade.
O objetivo deste pequeno texto remete a uma convocação para se deter nessas imagens, não apenas porque elas são signos visuais que exprimem e narram a verdade tal como está acontecendo, mas porque elas são o testemunho de um trauma histórico do presente. Testemunhar não é proferir um discurso coerente, nem tampouco esclarecer ou demonstrar um conhecimento sobre algo que foi vivido. Ao contrário, na linguagem testemunhal está em jogo uma perda da linguagem, algo que não é comunicável ao outro e que permanece sem-forma no dizer. A respeito do testemunho, o filósofo italiano Giorgio Agamben nos diz:
Podemos dizer que dar testemunho significa pôr-se na própria língua na posição dos que a perderam, situar-se em uma língua viva como se fosse morta, ou em uma língua morta como se fosse viva. (...) A respeito de que tal língua dá testemunho? Porventura de algo – fato ou evento, memória ou esperança, alegria ou agonia – que poderia ser registrado no corpus do já-dito? Ou da enunciação, que atesta no arquivo[1] a irredutibilidade do dizer ao dito? Não enunciável, não arquivável é a língua na qual o autor consegue dar testemunho de sua incapacidade de falar. (AGAMBEN, 2008, pp. 169-161)
No texto “Educação e crise: as vicissitudes do ensinar”, Shoshana Feldman relata a experiência de projetar vídeos do Fortunoff Video Arquive contendo testemunhos do Holocausto a sua classe de alunos para trabalhar questões como trauma, testemunho, narração e história. Como referências, ela trabalha em sala de aula autores como Freud, Camus e, principalmente, Paul Celan, o poeta que, junto com Primo Levi, se converteu em uma das grandes vozes testemunhais do universo concentracionário. Após a experiência de assistir às imagens dos testemunhos com os alunos, Feldman recria o texto da “Palestra de Bremen” de Celan, que havia sido lido na sala de aula durante o curso. De acordo com ela, os alunos vivenciaram uma “perda da linguagem" (FELDMAN, 2000, p. 63), lidaram com o sentimento de que “a linguagem era inadequada” (Ibidem, p. 63) e sentiram uma espécie de “desconexão” (Ibidem, p. 63). O que ela tentava transmitir para os alunos é que é “precisamente desta perda que Celan fala, esta perda para a qual todos nós fomos, de alguma forma, feitos para viver” (Ibidem, p. 63).
É preciso sublinhar que essa perda estrutural, para a qual nós mesmos fomos feitos para viver, diz respeito ao transbordamento evocado pelo mecanismo traumático. Assim, há algo de suspenso na linguagem, sobre o qual é possível falar ou não falar, que põe em xeque a pressuposição de que há uma conjunção perfeita entre o plano do significado e o do significante, por meio da qual a linguagem operaria sem falhas garantindo o sentido e a conciliação harmônica na comunicabilidade. Esse domínio da linguagem no qual experimentamos um desamparo traumático, em que ficamos nus e expostos ao fora da linguagem, é o que, nas palavras do próprio Celan, pode ser evocado pela expressão das “mil escuridões dos discursos que trazem a morte” (CELAN apud FELDMAN, 2000, p. 63).
Como na assustadora imagem do poeta, as imagens – pelo menos aquelas sobre as quais precisamos nos debruçar em um mundo saturado por imagens – também são inadequadas, como se também uma escuridão terrível as assombrasse. Como o filósofo Georges Didi-Huberman escreve em Quando as imagens tomam posição, elas têm um “excesso de conhecimento” (DIDI-HUBERMAN, 2017 p. 237) que não deve ser entendido apenas no sentido positivo da transmissão histórica de algum conteúdo que pode ser facilmente assimilado, mas justamente o oposto disso: enquanto excesso, elas expressam sempre um resto que não pode ser domesticado pelo discurso.
Quando nos colocamos diante da imagem para vê-la, ela também nos olha, e na distância entre o olhante e o olhado se produz uma perda, que é sempre traumática para o sujeito e fonte de mal-estar. Quando eu olho para as imagens excessivas da morte causada pelo Covid-19, eu não vejo apenas aquilo que se apresenta como visível, mas me exponho à ameaça das mil escuridões sobre a qual fala Celan, escuridão que, mesmo sem recursos de uma ordem estabelecida – uma vez que ela não mais existe –, nós teremos de atravessar. Como afirmou o filósofo camaronês Achille Mbembe em texto publicado durante essa semana sobre a epidemia de coronavírus que acomete o planeta, “nunca aprendemos a morrer” (MBEMBE, 2020, n.p), o que quer dizer simplesmente: é desde sempre urgente nossa responsabilidade ética com tal aprendizado.
[1] Nessa passagem, Agamben faz referência a uma discussão desenvolvida previamente a respeito do conceito de arquivo que, segundo ele, seria oposto ao conceito de testemunho. O filósofo está dialogando sobretudo com o Foucault de Arqueologia do saber, ao afirmar que “entre a memória obsessiva da tradição, que conhece apenas o já dito, e a demasiada desenvoltura do esquecimento, que se entrega unicamente ao nunca dito, o arquivo é o não-dito ou o dizível inscrito em cada dito”, ao passo que o testemunho é “o sistema de relações entre o dentro e o fora da langue, entre o dizível e o não-dizível em toda língua – ou seja, entre uma potência de dizer e a sua existência, entre uma possibilidade e uma impossibilidade de dizer”. No sentido da proposição filosófica de Agamben, enquanto o arquivo se inscreve na modalidade do possível ou do impossível, o testemunho, enquanto atravessa por uma potência ou impotência do dizer, pertence ao campo da contingência. Justamente por isso, ele diz mais à frente: “o testemunho é uma potência que adquire realidade mediante uma impotência de dizer e uma impossibilidade que adquire existência mediante uma possibilidade de falar." Na articulação que proponho no texto, as imagens não pertenceriam à dimensão arquivística, mas sublinhariam a condição de testemunhas do evento, justamente porque elas não são compreendidas apenas como meras evidências visuais de um fato (Cf. AGAMBEN, 2008, pp. 145-146).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.
DIDI-HUBERMAN, George. Quando as imagens tomam posição. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.
FELDMAN, Soshana. ““Educação e crise: as vicissitudes do ensinar”. In: NESTROVSKY, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo, Escuta, 2000.
MBEMBE, Achille. “ O direito universal à respiração”. Tradução de Mariana Pinto dos Santos e Marta Lança. Disponível em: https://www.buala.org/pt/mukanda/o-direito-universalrespiracao?fbclid=IwAR3zWof4fMjXC3MrWKxdAbm1VwuetzG2YsjyObPW-Egc1ioGKZb4SvTtyIA. Acesso em 10 de abril de 2020.
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