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SOPHIE BỌ́SẸ̀DÉ

Nascimento: 12 de maio de 1935

Morte:  23 de dezembro de 2018

                           Carlos Eduardo da Silva Rocha

Graduando em Filosofia, UFRJ

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Imagem retirada do Google Imagens

Sophie Bọ́sẹ̀dé Olúwọlé foi uma filósofa nigeriana cujo trabalho se debruçou sobre o estudo e divulgação das filosofias africanas, em especial Ifá, a filosofia de Ọ̀rúnmìlà.

Dados Biográficos

 

Em uma palestra no evento “Conferências Africanas: semana de Ooni de Ifé no Rio” realizado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 12 de junho de 2018, a Filósofa, Doutora e Professora Sophie Bọ́sẹ̀dé Olúwọlé iniciou sua fala ((6) Final Sequence 2 com trecho - YouTube , acesso em 2022) dizendo que gostaria de se apresentar como alguém que teve uma oportunidade muito incomum. Essa oportunidade foi o estudo e a difusão das filosofias africanas.

Sua vida foi um exemplo de perseverança, dedicação e luta contra o eurocentrismo ainda tão forte na academia mundial. Olúwọlé enfrentou de frente a colonialidade acadêmica que ainda resiste em reconhecer a existência das filosofias Africanas. Como Filósofa, Olúwọlé apontou o dedo e denunciou o racismo estrutural que sufoca o estudo, a pesquisa e a divulgação de todo o pensamento que não seja branco e Ocidental. Como diz o título do artigo escrito por Christine Manby e Peyvand Khorsandi (2019) para o site Independent (https://www.independent.co.uk/news/obituaries/sophie-oluwole-dead-obituary-african-philosopher-nigeria-yoruba-mamalawo-a8720696.html, acesso em 2022), Sophie Olúwọlé foi a filósofa nigeriana que ajudou a colocar o pensamento yorùbá no mapa.

 

Nascimento e primeiros anos

 

Em seu artigo biográfico, Ademola Kazeem Fayemi (FAYEMI, “Remembering the African Philosopher, Abosede Sophie Oluwole: A Biographical Essay”. In: Filosofia Theoretica: Journal of African Philosophy. Culture and Religions vol. 7 n° 3 (Dedicated to the late Prof. Sophie Oluwole), 2018, pp. 119-120.)  nos lembra que Abọ́sẹ̀dé Olayemi Sophie Olúwọlé nasceu em 1935 em Igbara-Oke no Estado de Ondo, Nigéria, em uma família de fé Anglicana. Ambos seus pais eram naturais do Estado de Edo, sendo seu pai batizado em 1912 e sua mãe em 1915 logo após seu casamento. Seu avô, natural do Benin, era um oficial de alta patente no palácio do Ọba (rei/rainha, monarca ou soberano) do Benin. Sua avó materna, também natural do Benin, era filha do governador de Ogotun. Ambos seus pais eram comerciantes bem-sucedidos, sendo sua mãe uma especialista em tecitura e tingimento e uma tecelã estabelecida no mercado de Igbara-Oke. Já seu pai foi um comerciante cujo trabalho o levava de Lagos para Igbara-Oke e de Igbara-Oke para Onitisha que é uma cidade com um polo comercial popular na zona leste da atual Nigéria. (FAYEMI, 2018, p. 120)

Apesar da crença popular de que Olúwọlé é uma Yorùbá devido sua proeminência no estudo da filosofia Yorùbá, na verdade sua ancestralidade vem de Edo e o fato de ela ter nascido em Igbara-Oke foi um resultado de seu pai ter vivido lá (Ibid. pp. 119-120) Sendo uma mulher de ancestralidade Edo, Olúwọlé compreendia o dialeto Edo, contudo não era fluente no mesmo. Contudo, Fayemi observa que é mais adequado considerá-la mais como uma pessoa Yorùbá do que Edo, devido a origem yorùbá de seu nome. Ambos os nomes de nascimento da filósofa (sem contar seu nome de casamento, Olúwọlé), Abọ́sẹ̀dé que significa “uma menina nascida em um domingo” e Olayemi que, por sua vez, significa “eu mereço a fortuna” são nomes de origem Yorùbá, embora sua linhagem fosse de Edo. Já Sophie, não era seu nome de nascimento, muito menos um nome que ela escolheu, mas uma curiosa consequência do início de sua educação (Ibid.).

 

O início da educação e carreira acadêmica

 

Os primeiros anos da educação da filósofa foi marcado por um fato curioso: o recebimento do nome “Sofia”, por volta dos 8 anos de idade quando ela foi batizada. O nome foi dado por um amigo da família que era, também, o diretor da escola comunitária de Igbara-Oke onde ela estudava. O diretor batizou a futura filósofa como Sofia por reconhecer que Abọ́sẹ̀dé Olayemi era uma criança de extrema inteligência. O nome dado pelo diretor foi um divisor de águas na vida de Sophie, pois pelo reconhecimento de sua notória inteligência ela passara a viver na casa do diretor e, daí, começou a frequentar a St. Paul’s Anglican Primary School em Igbara-Oke, onde ela teve sua educação primária (Ibid., pp. 120-121). Então, ela passou a frequentar a Anglican Girl modern school na cidade de Ile-Ife em 1951. Em 1953 ela foi para Ilesha e lá frequentou Women Training College, onde concluiu com um certificado de classe nível IV (class IV certificate) e com esse excelente resultado ela se tornou qualificada para a profissão docente. Uma outra curiosidade quanto ao nome da filósofa é que, de acordo com Fayemi, a mudança de “Sofia” para “Sophie” foi uma questão de escolha da própria filósofa, embora não fique claro o motivo da mudança (Ibid. p. 120). 

Sua carreira docente teve seu início em Ogotun e depois em Ibadan, porém sua carreira teve um hiato devido a uma viagem para Moscou ao lado de seu marido que ganhara uma bolsa de estudos (FAYEMI, 2018, p. 121). Em moscou, a intenção de Olúwọlé era estudar economia, contudo havia a barreira da língua. Devido sua dificuldade com a língua russa, ela entrou para um curso preparatório na Universidade do Estado de Moscou com duração de um ano, contudo o término de seu curso, em 1964 coincidiu com a decisão de seu marido de deixar a União Soviética pela dificuldade que ele, também, encontrou com a língua russa. Assim, a vontade de Olúwọlé em estudar economia permaneceu em solo Russo. De Moscou ela partiu para a Alemanha em 1965, enquanto o marido fora para os Estados Unidos para dar continuidade aos seus estudos. Uma vez na Alemanha ela se encaminhou para Universidade de Cologne (Ibid.), mas por ela não ter a convalidação (A levels) de seus estudos antes de sair da Nigéria e como seu curso preparatório feito em Moscou não tinha reconhecimento na Alemanha, mais uma vez ela se preparou pelo período de um ano. Sua excelente performance na Universidade de Cologne conferiu a ela uma bolsa de estudos completa em filologia. No entanto, Olúwọlé não deu continuidade com sua bolsa de estudos, decidindo se encontrar com seu marido nos Estados Unidos com quem teve, antes de sua odisseia acadêmica, três filhos (Loc. Cit.). Ela retornou para Nigéria em 1967, mas não antes de se certificar que seria admitida em uma Universidade Nigeriana antes de retornar.

De volta a Nigéria, nem passava pela mente de Olúwọlé estudar Filosofia, (ibid., p. 122), sendo admitida no Programa de Educação da Universidade de Lagos, em 1967 com seu foco em letras inglesas. Todavia, ela abandonou seus estudos de língua inglesa pelo medo respeitoso que tinha de Wole Soyinka. Akínwándé Olúwọlé Babátúndé Ṣóyíinká, mais conhecido como Wole Soyinka é um poeta, ensaísta, dramaturgo, professor e acadêmico nigeriano em língua inglesa, vencedor do prêmio Nobel de Literatura por “In a wide cultural perspective and with poetics overtones fashioning the drama of existence”, em 1986 (fonte: wikipedia.com & NobelPrize.org). Segundo Fayemi, Soyinka causava um temor enorme em Sophie devido sua grande reputação como um “monstro acadêmico” do Departamento de Língua Inglesa da Universidade de Lagos. Ao deixar seus estudos de língua inglesa, o germe pelo estudo da filosofia começara a surgir em Olúwọlé devido sua capacidade inata de olhar para diversas questões sob uma perspectiva crítica. Ela obteve sua primeira formação em filosofia em 1970. Fayemi (2018, p. 122) destaca que durante sua graduação em filosofia ela nunca foi introduzida à filosofia africana, muito provavelmente pelo fato de seus professores não terem formação em filosofia africana, mas sim formação no cânone “tradicional” eurocêntrico da filosofia acadêmica, mais especificamente as filosofias grega, britânica e alemã. Ela concluiu seu mestrado em 1974 pela Universidade de Lagos. Foi durante a redação de sua dissertação de mestrado que Olúwọlé ouve pela primeira vez o conceito de filosofia africana por parte de J.B. Danquah (Jr.). O interesse de Danquah pela filosofia africana tinha como objetivo a filosofia egípcia antiga e da relação da filosofia grega com o pensamento egípcio, mas Olúwọlé tinha certas restrições quanto à pesquisa de Danquah (Ibid.).  A preocupação de Olúwọlé não estava em comparar pensamento egípcio com o grego ou investigar a africanidade da civilização egípcia. Ao invés disso, Olúwọlé ponderava as seguintes questões: “Se os Egípcios eram pretos e estudaram filosofia primeiro, o que aconteceu com o povo originário, o povo que iniciou a filosofia?” Haverá algum resíduo de pensamento africano que possa pré-datar a invasão islâmica e cristã em terras africanas?  Com sua dissertação de mestrado ela pretendia lançar alguma luz sobre essas questões. No entanto, como bem coloca Fayemi (2018, p. 123), o sonho de Olúwọlé em pesquisar filosofias africanas foi frustrado pelo simples, porém grave fato de não haver quem pudesse orientá-la em sua pesquisa, ou seja, em uma Universidade Africana não havia nenhum/a professora/or com qualificação para orientar uma pesquisa em filosofia africana, visto que a formação dos professores de Olúwọlé era a formação “canônica”, ou seja, eurocêntrica, como já mencionamos. Então, o assunto de sua dissertação mudou de filosofia africana para filosofia da linguagem no pensamento ocidental. O título de sua dissertação foi “An Introduction into the Relationship between Transformational Grammar and Logical Analyses” (Uma Introdução acerca da Relação entre Gramática Transformacional e Análise Lógica). Contudo, mesmo diante das adversidades, a filósofa não perdera seu intuito de investigar e pesquisar o pensamento africano. Em sua pesquisa de doutorado que ela iniciou em 1977, ela tinha a intenção de estudar “The Rational basis of Yorùbá Ethics” (A Base Racional da Ética Yorùbá). Porém, mais uma vez ela encontraria barreiras em sua busca pela filosofia africana, especificamente, da negação por parte de seu orientador Peter Bodunrin da existência de um corpus de pensamento africano que pudesse ser classificado como filosofia, isto é, Bodunrin negava a possibilidade da existência de uma filosofia africana, sendo sua especialidade a filosofia grega. Em uma nota de rodapé, Fayemi observa que Peter Bodunrin construiu uma reputação por negar filosofia africana, sendo posteriormente caracterizado como um universalista ao lado de outros estudiosos como Paulin Hountondji, Kwasi Wiredo e Odera Oruka (FAYEMI, 2018, P. 123). Assim, o tema da pesquisa de doutorado de Olúwọlé foi acerca de metaética e a regra de ouro. Essas barreiras encontradas pela filósofa foram mencionadas por ela em sua conferência na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2018 quando ela disse:

 

Quando eu escrevi minha tese de doutorado que eu terminei em 1984, não me permitiram trabalhar um tópico africano, pois não existia uma filosofia africana. Então, eu tive que obedecê-los e tive que estudar a filosofia ocidental e tudo o que me ensinavam era filosofia ocidental. Durante meu doutorado eu queria mostrar para eles que havia filosofia africana, todos os artigos que escrevi eram para mostrar para eles que existia filosofia africana. Isso porque quando me ensinavam filosofia ocidental, me ensinavam o que um determinado pensador disse. filosofia é o que as pessoas dizem, então, David Hume, Thomas Hobbes, Bertrand Russell, todos ocidentais. Eu tive que memorizá-los, tive que repeti-los e não podia criticá-los. Enquanto eu repetisse essas pessoas, eu era elogiada, porque eu podia citar o que aquele filósofo havia dito. (OLÚWỌLÉ, 2018, transcrição e tradução nossa)

 

Mas como lembra Fayemi (Ibid., p. 123), embora não tivesse interesse em pesquisar filosofia ocidental, Olúwọlé usou essa pesquisa para mostrar sua capacidade enquanto pesquisadora em temas filosóficos o que ela fez com louvor ao defender com muito sucesso sua tese em 1984, sendo a primeira mulher receber o título de Doutorado em filosofia por uma Universidade Nigeriana e em toda África Subsaariana, o que acabou por abrir as portas para ela se dedicar ao estudo de filosofias africanas.   

Olúwọlé teve algumas influências em sua busca pela filosofia africana. Fayemi (Ibid, p. 124) destaca três influências que contribuíram muito para jornada da filósofa na investigação e divulgação do pensamento Africano. A primeira influência foi o Dr. Errka Maula, um professor com várias certificações como, por exemplo, Bacharelado em literaturas inglesa e alemã, Mestrado em matemática e Doutorado em filosofia. Maula foi responsável por estimular o interesse da filósofa em analisar a tradição filosófica e em pensar e escrever de forma crítica e lúcida. A segunda influência foi a de A. G. Elgood, Diretor do Departamento de Filosofia da Universidade de Lagos, em 1966. Elgood era um defensor de que o pensamento Africano era fatalista, uma posição que Olúwọlé rejeitava com veemência. A terceira influência foi a que levou Olúwọlé ao encontro de Ifá, o sistema filosófico de Ọ̀rúnmìlà.

 

Ifá é a filosofia de Ọ̀rúnmìlà (filósofo yorùbá do séc. IV a.C.), transmitida de forma oral. O corpus filosófico de Ifá é composto por 256 poemas chamados Odù que se dividem em 16 Odù maiores os Ojú Odù e 240 Odù menores chamados Ọmọ Odù, que são interpretados por uma série de sistemas oraculares. A introdução de Olúwọlé ao pensamento de Ọ̀rúnmìlà não ocorreu em uma Universidade ou pelo intermédio de algum professor, mas por Funke Geshide, filha de Olúwọlé. Geshide estudava a tradição oral de Ifá em seu período na Universidade de Lagos. Quando ela se casou, deixou grande parte de sua coleção de livros para sua mãe, sendo um desses livros Awon Oju Odu Mereerindinlogun (Sixteen Great Poems of Ifá) (1977) de Wande Abimbola, um babaláwo (sacerdote oraculista), estudioso e professor da filosofia de Ifá. Embora ela não tenha se mostrado particularmente interessada pelo título do livro (Ibid, p.124), quando ela leu alguns versos dos Odù Ejiogbe e Owonrin meji, percebeu a beleza e a racionalidade do pensamento do filósofo yorùbá antigo. Esse encontro aleatório com livros que traziam em suas páginas transcrições da tradição filosófica oral de Ifá foi o ponto de virada na vida, carreira e no pensamento de Sophie Olúwọlé, pois ela finalmente encontrara o que tanto procurava, um sistema endógeno Yorùbá de conhecimento que, de fato, se classificava como filosofia, contrariando a crença de seu antigo orientador Peter Bodunrin. Ao se deparar com Ifá, (Ibid., p. 125) Olúwọlé se deparou com uma tradição filosófica oral que discutia questões humanas fundamentais como ética, metafísica, epistemologia, entre outras. Mais uma vez a barreira da língua se mostraria um desafio para a filósofa, pois como uma Nigeriana imersa em uma realidade colonial, a “língua materna” de Olúwọlé era o inglês o que levou a filósofa a buscar tutores em idioma yorùbá para que ela pudesse ler e interpretar os versos dos Odù que compõem o corpus Ifá que, como grande parte da literatura da antiguidade eram compostos em um complexo estilo linguístico (Ibid, p. 125).    

O encontro com Ifá fez com que a filosofia de Ọ̀rúnmìlà se tornasse a pedra angular do pensamento de Sophie Olúwọlé, fazendo com que ela se tornasse uma das maiores especialistas e divulgadoras de Ifá enquanto filosofia e pesquisa acadêmica. Com Ifá, Olúwọlé defendeu um sistema filosófico Africano que, segundo ela mesma disse em sua conferência na Universidade Federal do Rio de Janeiro, é um sistema que contém Religião, Filosofia, Matemática, Física, Lógica, Física Quântica e Computação. (OLÚWỌLÉ, 2018, transcrição e tradução nossa). Com Ifá, Olúwọlé mostrou que as Filosofias Africanas, de fato, existem e que nada deve para a Filosofias Ocidentais, tanto que em sua magnum opus Sócrates and Ọ̀rúnmìlà: Two Patron Saints of Classical Philosophy ela faz um estudo comparativo entre os filósofos Sócrates e Ọ̀rúnmìlà o que acabou por ser, também, um estudo comparativo entre as filosofias ocidentais e africanas, apontando suas muitas semelhanças e diferenças. Como afirma Fayemi (Ibid., pp. 209-130), Sophie Olúwọlé foi uma estudiosa incrível e uma das mais proeminentes filósofas nigerianas, tendo recebido no decorrer de sua carreira uma série de prêmios como o Bundesstudentenring da Alemanha Ocidental (1965-1967), o prêmio de bolsa de estudos de pós-graduação da Universidade de Lagos (1971-1972), o prêmio Jean Harris pela grande contribuição para o progresso e desenvolvimento das mulheres na sociedade pelo Rotary International em (1997) e o prêmio Emotan (2001).

Em 23 de dezembro de 2018, em Ibafo, Estado de Ogun na Nigéria, Sophie Bọ́sẹ̀dé Olúwọlé deixou o Àyié (mundo material, segundo Ifá) para encontrar com seus ancestrais no Ọ̀run (mundo imaterial, segundo Ifá), mas a marca que ela deixou nunca será apagada. Com sua obra, Olúwọlé, de fato, colocou o pensamento yorùbá no mapa, mostrando que a filosofia não é universal, mas pluriversal. Com sua obra, Sophie Bọ́sẹ̀dé Olúwọlé mostrou que, para o estudo da filosofia é necessária a busca pelas origens ou como ela mesma disse: “O caminho para frente, é voltando para casa” (OLÚWỌLÉ, 2018, transcrição e tradução nossa)

 

Obras da Filósofa

Katanfuru: who are (we/they) Africans? Some memorable Questions, CEFACAD, 2011.

A preocupação com a língua e sua relação com a identidade

Em sua vida como pesquisadora acadêmica, Sophie Olúwọlé sempre encontrou resistência em sua defesa de que o pensamento africano pudesse ser classificado como filosofia. Essa resistência levou a filósofa a defender a pluriversalidade da filosofia tanto africana como ocidental, o que por sua vez, conduziu a filósofa à questão da língua.

Em sua conferência na Universidade Federal no Rio de Janeiro, em 2018, ela chamou atenção para a importante questão de que a filosofia não tem uma língua particular, ou seja, a filosofia ocidental é difundida em muitas línguas como, por exemplo o inglês, o francês ou o alemão. O que a filósofa quis dizer é que não existe uma única filosofia ocidental, mas filosofias ocidentais. Na conferência, Olúwọlé disse:

 

Quando me falavam de filosofia ocidental, eu retrucava: ‘não existe filosofia ocidental’. Existe filosofia inglesa, existe filosofia francesa, existe filosofia alemã, mas não podemos colocá-las juntas, pois as línguas são diferentes. Então, se você quiser ensinar filosofia africana busque o que os africanos dizem em suas próprias línguas (OLÚWỌLÉ, 2018, transcrição e tradução nossa)

 

A Filósofa observou na conferência que, só na Nigéria, existem mais de 100 línguas, assim, para se fazer filosofia na África, é preciso tomar o que determinada/o filósofa/o disse em sua língua materna e tentar compreender o que aquela/e filósofa/o disse. Ela usou a si mesma como exemplo, pois, como se dedicou à filosofia de Ifá, ela teve que aprender o idioma yorùbá para, assim, compreender o que Ọ̀rúnmìlà e seus discípulas/os disseram. Porém ela lembra que seu estudo se focou no yorùbá e na filosofia de língua yorùbá, por isso ela não entendia outras línguas de matriz africana como, por exemplo, o idioma ibo. O importante ponto que a filósofa está fazendo é que, assim como não existe uma única filosofia ocidental, também não existe uma única filosofia africana, mas filosofias africanas, cada qual com sua língua materna.

Ainda na conferência, Olúwọlé observou a importância da língua materna e da redescoberta da língua materna para o estudo das filosofias africanas. A filósofa dá testemunho de suas próprias experiências enquanto filósofa e acadêmica dizendo que:

 

Apenas os homens brancos são sábios, apenas os brancos são inteligentes, apenas os brancos detêm conhecimento, apenas os brancos podem estudar matemática, apenas os brancos têm filosofia. E todos os pretos são idiotas, primitivos, não temos capacidade de pensar, não podemos formular matemática. Foi isso que me ensinaram. (OLÚWỌLÉ, 2018, transcrição e tradução nossa)

 

Essa redução do pensamento africano e dos próprios africanos em instituições de ensino da África levou Olúwọlé a escrever Katanfuru: who are (we/they) Africans? Some memorable Questions. Katanfuru, segundo a filósofa significa “alguém que perdeu sua língua e, portanto, é um tolo/a”. A filósofa observa que se um indivíduo não consegue falar sua própria língua ou quando as pessoas não entendem a sua língua, isso significa que elas não têm nada. A filósofa observa que foi isso que ela aprendeu ao estudar a língua yorùbá, ou seja, a importância do resgate das línguas originárias para a cultura e para a filosofia. Ela diz que estudantes africanos que estudam o ocidente concordam com os ocidentais quando, em seus escritos, deixam claro que os africanos são estúpidos. Com Katanfuru, a autora busca reverter a redução colonial sofrida pelo pensamento africano e pelos próprios africanos. Katanfuru levanta a questão: “Quem são os Africanos?”, com essa pergunta ela confronta a visão ocidental dos africanos e a visão que os próprios africanos têm de si ao estudarem autores ocidentais. Ela diz que a pergunta difícil é: “Quem somos nós Africanos?”; com essa pergunta, a filósofa convida os africanos a questionarem a si mesmos, falar por si mesmos e estudar o que seus ancestrais disseram em sua própria língua, reconhecendo a sabedoria de suas palavras. Sophie Olúwọlé disse que foi isso que ela descobriu ao estudar yorùbá, ou seja, ela descobriu que seus ancestrais yorùbá são mais racionais, mais éticos e mais lógicos que os ocidentais.

Portanto, com as questões de Katanfuru: who are (we/they) Africans? Some memorable Questions, Olúwọlé faz uma forte crítica à colonialidade ainda tão intensa na África e pensamento africano. Uma colonialidade que acabou por afastar os africanos de sua própria herança cultural e filosófica. Em katanfuru, Sophie Olúwọlé faz uma crítica ao ocidente, uma crítica que ela apontou em sua conferência no Rio de Janeiro, acusando os ocidentais de serem mais estúpidos, primitivos e socialmente inaptos que os africanos, que os yorùbá. A filósofa observa que ela faz essas críticas ao ocidente com base em evidências, que são os ensinamentos da sabedoria endógena yorùbá.

Philosophy and Oral Tradition. Lagos, Nigeria: African Research Konsultancy, 1997.

A importância das tradições orais enquanto filosofia

 

Um dos temas a que Olúwọlé se dedicou foi a relação entre filosofia e as tradições orais. Como observa Gail Presbey em seu artigo “Sophie Olúwọlé’s Major Contributions to African Philosophy” (2020, p. 233), Olúwọlé critica todo um grupo de eruditos africanos em filosofia que, por décadas, desacreditaram as tradições orais de sabedoria.

Como aponta Presbey, a Filósofa critica esses eruditos por considerar que eles taxaram, de forma injusta, as tradições orais como autoritárias e dogmáticas.  Ela rebate esses eruditos afirmando que as tradições orais africanas não são autoritárias, pelo contrário, são parte da tradição liberal na África. Segundo a filósofa, (OLÚWỌLÉ, 1997a, pp. 67, 70 apud PRESBEY, 2020, p. 233), as histórias orais são dinâmicas, não são apenas memorizadas, mas também analisadas, ou seja, as histórias orais não eram compreendidas de forma literal, mas interpretadas. As histórias orais, como os Odù Ifá, trazem nos versos de seus poemas belíssimas lições filosóficas sobre ética, metafísica, epistemologia, entre outras lições que estão contidas nas narrativas míticas de seus poemas. E, para Olúwọlé, os antigos pensadores yorùbá consideravam a razão como uma importante parte da vida, porém, sem negligenciar outras de suas partes como, por exemplo, a intuição, os sentimentos e as emoções.  Olúwọlé (1997a 62, 70) considerava que as tradições orais ajudavam, de forma irrefutável, o desenvolvimento intelectual.

Em suma, Olúwọlé, em seus escritos, defende que as tradições orais Africanas não são autoritárias, mas libertárias, que elas não são estúpidas ou retrógradas, mas fonte de conhecimento filosófico onde a razão é privilegiada, mas não apenas a razão, como também a emoção e a intuição, ou seja, todas as características que compõem o ser humano.

Witchcraft, Reincarnation and the God-head. New Delhi: Excel Publishers, 1992.

Sobre bruxaria e reencarnação

Em seu livro “Witchcraft, Reincarnation and the God-head”, como afirma Presbey (2020, p. 232), Sophie Olúwọlé realiza um estudo acerca da bruxaria mantendo, ao mesmo tempo, mente aberta e uma posição cética para com aqueles que acreditam na eficácia da bruxaria. A filósofa faz também uma crítica ao materialismo ocidental contrastando este com a crença em reencarnação das culturas africanas.

Segundo a filósofa, não se pode refutar totalmente a eficácia da bruxaria usando o método científico, já que há alguns casos nos quais algumas pessoas manifestaram resultados que podem ser considerados como evidência empírica com demonstrações experimentais, mesmo que em âmbito hipotético. Ela aponta que físicos têm absoluta crença na realidade dos neutrinos, embora os seres humanos não possam experimentá-los de forma direta, mas apenas seus efeitos (OLÚWỌLÉ, 1995, p. 368 apud PRESBEY, 2020, p.232). Ela aponta que praticantes de bruxaria afirmam possuir fontes que estão além da experiência, o que desafiava as suposições científicas. Segundo Olúwọlé, Crawford e outros defensores do método científico que afirmam que a bruxaria é “objetivamente impossível” na verdade estão cometendo um erro lógico quando negam a realidade de experiências que falham ao se adequar a leis científicas vigentes, pois mesmo na ciência ocidental as leis mudam com o tempo (OLÚWỌLÉ, 1995, p. 636 apud PRESBEY, 2020, p. 232). Por outro lado, a filósofa convida aos praticantes da bruxaria a admitir que suas crenças não são infalíveis e imutáveis, para assim aprender com seus próprios erros.    

  

Quanto ao tema da reencarnação, a filósofa discute estudos empíricos (inclusive nos Estados Unidos) que traziam evidências acerca da reencarnação, ainda que de forma inconclusiva. Olúwọlé percebeu que alguns filósofos africanos se referiam à reencarnação como prova de que os africanos eram retrógrados intelectualmente. Olúwọlé aponta que os africanos que defendem a crença na reencarnação como retrógrada, o fazem porque essa defesa se encaixa em suas próprias ideias metafísicas, já que eles afirmam ter “evidências empíricas demasiadas” que corroboram sua defesa (OLÚWỌLÉ, 1992a, p. 52 apud PRESBEY, 2020, pp. 232-233). Para Olúwọlé, são os materialistas ocidentais que defendem uma posição irracional, pois, ao insistir em acreditar apenas em fenômenos que possam ser provados pela ciência, acabam rejeitando qualquer evidência empírica que desafie seu compromisso com o materialismo. Todavia, Olúwọlé é cuidadosa ao apontar que são alguns povos e não nações inteiras que possuem essas crenças e que tais crenças como a reencarnação são mais populares em algumas sociedades e tradições do que em outras. Ela também expõe sua posição em favor da reencarnação ao chamar a atenção para umas das próprias definições da filosofia que diz que as explicações filosóficas são racionais, baseadas na intuição e na experiência. E já que a maior parte da reflexão filosófica se dá pela especulação, não devemos pensar que a filosofia lide unicamente ou primariamente em absolutos.

Em resumo, Olúwọlé dedica parte de sua obra à investigação filosófica dos temas da bruxaria e da reencarnação, mostrando que a crença nesses temas não é sinônimo de deficiência intelectual ou filosófica. Ela mostra que o materialismo científico não pode simplesmente taxar como retrógado algo que não se encaixe nas leis científicas vigentes, visto que essas mesmas leis estão sempre em mudança. Ao mesmo tempo, a Filósofa convida aqueles que mantêm essas crenças a reconhecerem que suas crenças não são infalíveis e que possam, assim como os materialistas, aprender com seus próprios erros.

 

Socrates and Ọ̀rúnmìlà: Two Patron Saints of Classical Philosophy. 3ª edição, Lagos, Nigéria: ARK Publishers, 2017.

 

Comparando as Filosofias Africanas e Ocidentais

O ápice do trabalho de Sophie Bọ́sẹ̀dé Olúwọlé é a comparação que ela faz entre as Filosofias Africanas e Ocidentais, mais especificamente a Yorùbá e a Helênica ao comparar os dois maiores representantes dessas filosofias: O Heleno Sócrates e o Yorùbá Ọ̀rúnmìlà.  Ao apontar similaridades e diferenças entre os dois filósofos, Olúwọlé mostra, assim, as similaridades e as diferenças entre os pensamentos africano e ocidental.

Como bem lembra Presbey (2020, p. 234), Olúwọlé contextualiza Ọ̀rúnmìlà como uma pessoa histórica nascida no séc. IV a.C., cujas ideias foram transmitidas de forma oral para seus discípulos, ou seja, ela postula que Ọ̀rúnmìlà foi um filósofo que, de fato, viveu e teve discípulos, apesar do fato de Ọ̀rúnmìlà ser considerado um Òrìṣà, parte do panteão das divindades de Ifá. Na verdade, o que Olúwọlé faz é uma caracterização dos dois filósofos em três instâncias:

 

Sócrates: Fictício, Corporativo e Histórico;

Ọ̀rúnmìlà: Mítico, Corporativo e Histórico.

As Três Caracterizações de Sócrates

*O Sócrates Fictício

Ao retratar o Sócrates fictício, Olúwọlé (2017, p. 31) toma o Sócrates retratado por Aristófanes nas peças As Nuvens e As Aves. O Sócrates de Aristófanes era o líder de uma escola acusada de tentar revirar a sociedade grega de cabeça para baixo aliciando a juventude de Atenas, a colocando contra a tradição Grega, condenando o sistema educacional vigente e o processo de escolher os líderes políticos pelo meio da divinação.

O Sócrates de Aristófanes propunha que o que determinava as qualidades de um líder era a posse do conhecimento, o entendimento e a virtude moral. Essas eram as qualidades que justificavam quem deveria ser apontado para reger os assuntos de Estado. Aristófanes descrevia um Sócrates que propunha mudanças drásticas para o pensamento e crenças tradicionais Gregas, ou seja, questionando poetas como Homero e Hesíodo e políticos como Sófocles ou Sólon, assim como sofistas como Protágoras ou Górgias. Para Aristófanes Sócrates era um revolucionário radical que levaria a sociedade Grega à anarquia.

*O Sócrates Corporativo

Nesta caracterização, Olúwọlé (2012, p. 32) toma o Sócrates retratado por seu discípulo Platão. O Sócrates de Platão era uma síntese crítica do pensamento grego anterior e contemporâneo ao período em que Platão escreveu seus diálogos, por isso Olúwọlé caracteriza o Sócrates retratado por Platão como corporativo, pois, segundo ela, Platão retratava um Sócrates representativo de sua revolução, se referindo a ele como o mais sábio de todos os gregos.

 

Um dos aspectos do Sócrates corporativo de Platão era a proposta de sua tradição analítica como substituta do pensamento grego especulativo sobre a natureza e a experiência humana, sendo a sua maior tese a de que a análise racional das ideias, crenças e princípios sociais levariam a ambos indivíduo e sociedade à obtenção da virtude.

O Sócrates corporativo platônico é, como coloca a filósofa, um líder de um movimento intelectual radical. Um movimento no qual seus discípulos, como a vanguarda de nova cultura intelectual teriam o objetivo de atingir a Verdade e a Sabedoria através do processo de exposição da fraqueza e racionalidade inadequada dos poetas, políticos e sofistas.

*O Sócrates Histórico

Quanto ao Sócrates Histórico, Olúwọlé (2017, p. 33) traçou os dados da vida de Sócrates, o homem, que viveu na Atenas do séc. IV a.C., como por exemplo os nomes e as ocupações de seus pais. O nome do pai de Sócrates era Sophronisus, um pedreiro do distrito de Alopeke que ficava ao sul de Atenas. Sua mãe era parteira e se chamava Phainarete cujo nome significa “Revelando a Virtude”.

Olúwọlé lembra que Diógenes Laertes afirmou que Sócrates tinha 10 discípulos dos quais muitos eram seus amigos. Ela lembra que o número de discípulos era, provavelmente, maior devido o fato de cinco escolas de pensamento socrático terem sido estabelecidas (Composta, 1990, p. 139). Sócrates era descrito como alguém que estava sempre na companhia de outros, os quais o filósofo questionava acerca suas crenças e profissões. Os jovens, particularmente, viviam em torno de Sócrates cuja influência os tornava críticos quanto aos poetas e quanto à alegação dos sofistas de serem intelectuais e profissionais.

Olúwọlé (2017, p. 34) observa que, segundo registros históricos, o filósofo viveu na era em que a religião Ateniense era o culto aos 12 Olimpianos encabeçados por Zeus, lembrando que o santuário de Orfeu em Delfos alojava o famoso oráculo de Apolo. Quanto à aparência física de Sócrates, Olúwọlé menciona Durant (Life in Greece, p 336) que faz menção à imagem do busto de Sócrates o retratando como um homem feio para os padrões Gregos. O busto mostra um homem de rosto largo, nariz chato, lábios grossos e de barriga grande. Porque a figura de Sócrates fugia totalmente dos padrões gregos de beleza, Olúwọlé lembra de Nietszche quando este se questionou se Sócrates era realmente grego. A filósofa aponta que, para Will Durant e outros estudiosos, Sócrates parecia mais das Estepes do sudoeste Europeu ou da Ásia (Ibid.). No entanto, ao estilo socrático, Sophie Olúwọle aponta uma curiosa ironia, a que nenhum estudioso conhecido, sequer, sugeriu que Sócrates poderia ser um homem da África Mediterrânea (Ibid.). Ela observa que muitas das feições de Sócrates condizem com o fenótipo de pessoas pretas. Todavia, ela diz que a tese de um Sócrates preto não é sugerida por razões obvias: não há nenhuma menção a respeito disso em nenhuma literatura acerca de Sócrates. Segundo ela, seria uma afirmação zelosa demais dizer que egípcios pretos iniciaram os gregos em filosofia. Quanto ao restante de sua personalidade, ainda mencionando Durant (Ibid.), tanto Platão como Xenofante retratavam Sócrates como alguém com uma grande tolerância para o álcool, Platão o acusou de homossexualidade ou, pelo menos que ele era conhecido por dar conselhos a homossexuais e a ensinar as pessoas como atrair amantes. Ele usava vestes simples e preferia andar descalço e sempre comia ao convite de seus colegas. Era dito que sua pobreza era resultado de sua indiferença para com a riqueza, pois se sentia rico na pobreza.

Aos 70 anos de idade, Sócrates foi acusado do crime de impiedade, julgado, declarado culpado e condenado à morte. Seus amigos arquitetaram sua fuga da prisão, mas ele recusou.

 

As Três Caracterizações de Ọ̀rúnmìlà

*O Ọ̀rúnmìlà Mítico

Segundo Sophie Olúwọlé (2017, p.43), a tradição oral yorùbá descreve Ọ̀rúnmìlà como membro de um grupo celestial, os Òrìṣà que foram enviados por Olódúmarè (Todo Poderoso) para o àyié (mundo material), com tarefas específicas. A tarefa de Ọ̀rúnmìlà era usar sua sabedoria para organizar os assuntos da sociedade. O centro de suas atividades era Ile-Ife, o lar ancestral do povo yorùbá do sudeoste na Nigéria.

Segundo a tradição oral, embora Ọ̀rúnmìlà seja membro de um grupo de seres divinos, ele, assim como os demais Òrìṣà, abraçou a vida humana em todos seus aspectos, se estabelecendo, casando e tendo oito filhos. Algumas tradições dizem que ele retornou para o Ọ̀run (mundo imaterial) por ter ficado ofendido com um insulto proferido por um de seus filhos. Quando as pessoas apelaram para que ele retornasse para Ilé-Ifè, devido ao tumulto que sua partida provocara, Ọ̀rúnmìlà recusou, mas deixou um Oráculo para ser consultado sempre que seus conselhos fossem necessitados. O Oráculo é o sistema de Ifá.    

 

*O Ọ̀rúnmìlà Corporativo

Pelo conceito de Corporativo Olúwọlé caracteriza Ọ̀rúnmìlà como o axioma intelectual do povo yorùbá em um ponto particular no desenvolvimento de sua tradição filosófica. Ela observa (2017, p. 43) que o nome “Ọ̀rúnmìlà” é uma elisão de “Ọ̀run l’o mo ẹni ti ó là” que ela traduz por “Apenas o Céu sabe quem seria salvo no fim”. Como um conceito, Ọ̀rúnmìlà resume a visão de que nenhum ser humano possui o conhecimento ou sabedoria absolutos.

Ela chama a atenção para uma questão quanto ao nome do filósofo, pois o termo “Ifá”, em um sentido, se refere à vasta tradição oral do povo yorùbá, mas também é usado como nome alternativo para o próprio Ọ̀rúnmìlà. Ela afirma que o líder histórico desse grupo de pensadores tomou o nome “Ọ̀rúnmìlà” como uma alcunha, uma prática que, segundo ela, ainda é comum entre os yorùbá.

A filósofa lembra que os Ojú Odù, os 16 poemas maiores do Corpus Ifá são creditados como registros das 16 discípulas e discípulos originais de Ọ̀rúnmìlà, que em seus poemas registraram os ensinamentos e discussões que tiveram com seu mestre. Gerações posteriores adicionaram seus próprios pensamentos aos registros dos 16 discípulos originais e, como aprendizes, eles tinham que memorizar os versos dos Odù para, assim, adquirirem a competência necessária para analisar e interpretar os ensinamentos dos poemas. Então, cada um dos 16 Odù maiores foram compostos pelos 16 discípulos e discípulas originais a partir dos ensinamentos de seu mestre, ao passo que esses 16 discípulos também tiveram seus próprios discípulos e discípulas que também compuseram seus próprios Odù chamados Ọmọ Odù. “Ọmọ” é um termo de gênero neutro do idioma yorúbá (a maioria dos termos yorùbá não fazem distinção de gênero), que pode ser traduzido por criança, filha/o ou descendência, então, os Ọmọ Odù (Odù menores) são, literalmente, descendentes dos Ojú Odù (Odù maiores), ou seja, os Odú são composições dos discípulos de Ọ̀rúnmìlà e dos discípulos dos discípulos de Ọ̀rúnmìlà, totalizando um corpus filosófico de 256 Odù o que significa que o corpus Ifá foi composto por 256 filósofas e filósofos cuja linhagem começa com Ọ̀rúnmìlà, o fundador do sistema filosófico e criador dos sistemas oraculares que interpretam esse sistema.

 

*O Ọ̀rúnmìlà Histórico

Para a caracterização histórica, Olúwọlé (Ibid.) se baseia em uma lenda que descreve Ọ̀rúnmìlà como uma personalidade histórica nascida por volta de 500 a. C. (EMANUEL, 2000, p. 233). Ela observa que o Odù Ọ̀sá Méji (um dos Ojù Odù) contém uma descrição detalhada quanto à confusão do local de nascimento de Ọ̀rúnmìlà. O Odù conta que quando dito que o filósofo nasceu em Ado, ele responde que, na verdade, ele não é natural de Ado, mas que visitou Ado quando descobriu que a população de lá não tinha religião e foi até lá para levar Ifá para as pessoas.

Diz também que ele era de Òffá; no entanto mais uma vez Ọ̀rúnmìlà diz que ele não é natural de Òffá, mas que foi até lá, pois as pessoas estavam doentes. Também é dito que ele seria de Ijerò, mas ele teria respondido que apenas havia passado por lá. Outro relato diz que ele vem de Ìkòlé, o que o filósofo nega afirmando que foi até lá para pôr um fim à prática de bruxaria no local. Outra versão afirma que ele viria de Ilésha o que, também, teria sido negado pelo filósofo que teria dito que foi até a cidade, pois o Ọba e altos chefes tinham apenas uma peça de roupa cada um, então Ọ̀rúnmìlà foi até lá para ensiná-los a lidar com o comércio e a negociar para, assim, superarem a pobreza (Agboolá, 1989, p. 141-146). Olúwọlé menciona (2017, p. 45) Emanuel (2000, p. 56) que explica que a confusão quanto ao local de nascimento de Ọ̀rúnmìlà nos versos do Odù Ọ̀sá Méji dão maior credibilidades evidências de que ele era nascido e criado em Òkè Ìgẹ̀ti em Ilé-Ifè.

Quanto a sua aparência física, Olúwọlé cita novamente Emanuel (2000, p. 355) que se refere ao Odù Òyẹ̀kú Méji (um dos Ojú Odù) para descrever Ọ̀rúnmìlà como um homem feio, de barriga protuberante devido a muita bebida e de pele preta como se tingido com índigo. Ele é escuro como um ferreiro, tem a negritude de um ferreiro, uma paródia da beleza, tanto que quando se referem e ele dizem “Você não é exatamente bonito” para evitar ofendê-lo.

O período no qual Ọ̀rúnmìlà viveu em Ilé-Ifè foi um tempo em que condições sociais e materiais eram conduzidas pela emergência de estadistas, guerreiros, pensadores religiosos, seculares e filósofos. (EMANUEL, p. 163 apud OLÚWỌLÉ, 2017, P. 45).

Olúwọlé observa que a lenda acerca da vida de Ọ̀rúnmìlà afirma que ele era um sábio excepcional, o que o tornou extremamente famoso. Sua fama era tamanha que as pessoas o procuravam para se tornarem seus aprendizes, mas ele escolheu apenas 16 cujos nomes coincidem com os Ojú Odù (Odù maiores) de Ifá. Segundo a filósofa (2017, p. 46) há um testemunho textual de que ele lecionou em uma escola estabelecida em Òkè Itàsè e outra escola em Ilé-Ifè, que é hoje o santuário central de Ifá como uma religião mundial.

Ọ̀rúnmìlà era descrito como um homem que cuidava de sua grande família e de seus numerosos associados. Ele tinha muitas esposas, sendo a primeira Ọ̀ṣun que em algumas tradições orais, como observa Olúwọlé (Ibid.), ensinou para Ọ̀rúnmìlà a arte da divinação, já em outras fontes foi Ọ̀rúnmìlà que ensinou para ela as artes oraculares. Mas, como observa Olúwọlé, é uma constante nos Odù que Ọ̀ṣun, uma mulher, era uma praticante do Ẹ́ẹ́rìndinlógún, o oráculo dos 16 búzios que é uma das formas de divinação de Ifá. Olúwọlé afirma que isso significa que Ọ̀ṣun era uma profissional da divinação, além de esposa de Ọ̀rúnmìlà. Outra esposa de Ọ̀rúnmìlà foi Ìwà, cujo nome significa “Bom Caráter”, “Virtude”. É dito que Ọ̀rúnmìlà se divorciou dela por seus maus hábitos, mas logo se casou com ela novamente, pois ele descobriu que “A Vida sem Virtude não é nada”. O nome de Ìwà se tornou um símbolo da filosofia de Ọ̀rúnmìlà e todo o iniciado em Ifá recebe Igbá-ìwà, o símbolo do Bom Caráter.

Olúwọlé observa (2017, pp. 46-47) que, seja em mito ou lenda, Ọ̀rúnmìlà é intimamente associado com o desenvolvimento de Ifá como sistema de geomancia e como uma escola mística. Olúwọlé nos mostra que Ọ̀rúnmìlà é o fundador de um sistema filosófico composto por 256 poemas cujos versos superam o número de 400.000, formando, assim, o corpus literário e filosófico de Ifá.

Olúwọlé observa (2017, pp. 46-47) que, seja em mito ou lenda, Ọ̀rúnmìlà é intimamente associado com o desenvolvimento de Ifá como sistema de geomancia e como uma escola mística. Olúwọlé nos mostra que Ọ̀rúnmìlà é o fundador de um sistema filosófico composto por 256 poemas cujos versos superam o número de 400.000, formando, assim, o corpus literário e filosófico de Ifá.

Paralelos das vidas de Sócrates de Ọ̀rúnmìlà. (OLÚWỌLÉ, 2017, pp.19-50)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Algumas similaridades entre os dois Filósofos

*A Filosofia da Virtude

Olúwọlé afirma (2017, p. 74) que para Sócrates, a virtude não é unicamente o melhor e o maior ideal, mas, também, sinônimo de conhecimento, por isso, para o filósofo, ser virtuoso não é meramente conhecer um ideal, mas viver sob seus preceitos. Assim, para ele aqueles que praticam o mal o fazem por ignorância.

Já Ọ̀rúnmìlà insistia que Ìwà, o bom caráter, é o único ideal pelo qual vale a pena viver e toda as outras posses terrenas de nada valem se comparado com Ìwà (FALADE, 1998, p. 160-161).

 

*A Necessidade da Análise Crítica

A Filósofa diz (OLÚWỌLÉ, 2017, p.74) que ambos Sócrates e Ọ̀rúnmìlà priorizam a necessidade de explicar e criticar as ideias e crenças pelas quais vivemos. Esse é o sentido da famosa frase de Sócrates: “Uma vida não examinada não merece ser vivida”.

Os Yorùbá dizem: “Ẹ̀là l’ ọ̀rò, bi a ò ba lá a. Ki i yé nì”, que significa a: “A explicação é joia da proposição”. Eles também dizem: “Òwe l’esin òrò, bi òrò sọnú, òwe l’a fi n wá a” que Olúwọlé afirma que é convencionalmente interpretado da seguinte forma: “Provérbios são os cavalos nos quais o pensamento é buscado”; porém a filósofa observa que essa tradução é conceitualmente inadequada e que talvez uma tradução mais adequada seja: “O provérbio é uma ferramenta conceitual da análise; quando discurso não é claro, o provérbio é usado de forma explicita.” Para Ọ̀rúnmìlà, a falta de clareza pode custar a vida daquele que fala.

 

*A Confissão da Ignorância

Para Olúwọlé (2017, p.5), apesar da distância espacial e cultural que separava os dois filósofos, uma das características mais intrigantes de suas filosofias é a explicita confissão da ignorância comum a ambas: os dois os filósofos afirmam que a busca pelo conhecimento é uma prerrogativa do ser humano, embora reconheçam a limitação humana em obter conhecimento de forma absoluta.

A filósofa ainda aponta para o fato de que tanto Sócrates quanto Ọ̀rúnmìlà mantinham distância da arrogância intelectual injustificada demonstrada por alguns de seus contemporâneos. Para Olúwọlé, esse é um sinal importante da integridade intelectual de ambos. Todavia, Olúwọlé chama a atenção para o fato de a declaração da ignorância feita pelos filósofos não significar que eles desconheciam todos os assuntos, mas que não detinham o conhecimento absoluto sobre todas as coisas.

 

Algumas Diferenças Fundamentais entre os dois Filósofos

*A Concepção da Realidade

Sócrates, segundo Olúwọlé (2017, p. 77), acreditava que Matéria e Ideia têm uma existência independente, sendo o Heleno, portanto, um idealista. Ọ̀rúnmìlà, por outro lado, concebia que Ideia e Matéria constituíam um par inseparável, seja em natureza ou em funcionalidade. Olúwọlé aponta que Ọ̀rúnmìlà não era nem um materialista tampouco um idealista, mas tinha uma concepção dualista complementar da realidade.

 

*A Natureza do Conhecimento

 Olúwọlé (Ibid., pp. 77-78) lembra que, se a Verdade Absoluta pertence a Deus, como o próprio Sócrates afirma, assim o conhecimento buscado pelos filósofos tem de ser diferente a menos que eles considerem a si mesmos como deuses. Como ela lembra, a “alegoria da caverna” explica que embora o filósofo não seja Deus, ela/e deve ter uma contemplação direta das Ideias no mundo Ideal criado por Deus ao invés do conhecimento acessível pela experiência humana, já que essa forma de conhecimento não passa de uma cópia do conhecimento Ideal. Contemplar a luz das Ideias é o que qualifica um filósofo, do contrário seria um cego guiando outros cegos.

Como ela observa (2017, p. 78), embora Ọ̀rúnmìlà compartilhe com Sócrates uma visão similar acerca da Verdade, para ele existem, pelo menos, dois tipos de verdade. A primeira verdade que pertence unicamente a Deus, é infalível e supera todas as outras verdades, sendo inalterável e eterna.  Esta verdade, como ela afirma, difere do conhecimento da sabedoria que os seres humanos buscam. Devido à natureza a eclética dos seres humanos, as verdades por eles buscadas são igualmente ecléticas e por isso não podem ser eternas e imutáveis. Assim, Olúwọlé se questiona (Ibid., 78) “Qual é então a relevância da Verdade em Ifá? Como esta Verdade guia as ações humanas?” A resposta para essas perguntas, como ela mostra, está no Odù Ọ̀sá-Iwòri (um dos Ọmọ Odù), que diz que o discurso e a consulta com outro ser humano deve preceder a consulta com Ifá. Então, apenas quando a sagacidade humana se esgotar é quando devemos apelar para Verdade sobrenatural, ou seja, não devemos começar pela divinação, pela consulta aos oráculos. A consulta, o discurso com outros seres humanos devem preceder a assistência sobrenatural.

 

*O Bem e o Mal

Para Sócrates, como nos lembra a filósofa, todas as coisas ou são boas ou más, ou intermediárias e indiferentes. Já para Ọ̀rúnmìlà o bem e o mal constituem um par inseparável. Ele ilustra isso ao falar que a doçura e o azedume podem vir do sabor de uma mesma “Folha Azeda” ou que uma vida marcada pela adversidade pode terminar em prosperidade. Olúwọlé afirma que o Filósofo Yorùbá criou a seguinte hipótese: “Qualquer um que nunca tenha experimentado a pobreza nunca apreciará totalmente a prosperidade”. (Olúwọlé, 2017, p.78).

Algumas Citações das Filosofias Socráticas e de Ifá destacadas por Sophie Olúwọlé

 

*O Limite do Conhecimento Humano

Sócrates

“Eu sou chamado de sábio, pois aqueles que me ouvem, imaginam que eu possua a sabedoria que eu mostro não estar presente em meus interlocutores. Mas a verdade, ó homens de Atenas, é que apenas Deus é sábio ... Assim, prossigo pelo mundo, obediente ao Deus, buscando e questionando a sabedoria de quem quer que seja ... Quem se mostre como sábio ... e não for sábio, então ... Eu mostrarei que não é sábio.” PLATÃO, Apologia de Sócrates 23a-c (OLÚWỌLÉ, 2017, p. 56, tradução nossa)

 

Ọ̀rúnmìlà

“Eu estou grunhindo porque quero descobrir qualquer um de meus colegas que acredite que saiba o começo e o fim de todas as coisas e possa afirmar isso. Minha discussão com Ògún, Ṣàngó entre outros mostrou, claramente, que eles não conheciam nem o início ou o fim de todas as coisas. Quando eles se voltaram para mim e disseram: “Bàbá (termo yorùbá para “pai”), agora aceitamos que você é o único que conhece o fim de tudo”. Eu retruquei: “Eu mesmo não sei essas coisas. Para conhecer essas coisas você deve ir a Deus através da divinação, pois apenas Ele possui esse tipo de sabedoria” Eji-Ogbe (OLÚWỌLÉ, 2017, p. 56, tradução nossa)

 

*A Clarificação das Ideias

Sócrates

“(...) e (se eu disser) que a vida não examinada não vale a pena ser vivida, ainda assim, não me dariam crédito. Entretanto, o que eu digo é a verdade, embora seja difícil para mim persuadi-los.” PLATÃO, Apologia de Sócrates 38a-b (OLÚWỌLÉ, 2017, p. 57, tradução nossa)

 

Ọ̀rúnmìlà

“Para estabelecer a sabedoria, precisamos antes dedicarmo-nos seriamente à reflexão para remover as sementes da confusão. Decisões convincentes são o resultado da reflexão profunda acerca dos conceitos e crenças pelos quais vivemos. Qualquer um que siga uma pessoa não reflexiva, se arrependerá e, no final, morderá as pontas dos próprios dedos.” Ọwórín Méji (OLÚWỌLÉ, 2017, p. 57, tradução nossa)

 

 

*Destino Humano

Sócrates

“Teu gênio não lhe será atribuído, mas escolherás teu gênio. E quem for sorteado primeiro, que tenha a primeira escolha, e a vida que escolheres será teu destino.” PLATÃO, A República 617 e (OLÚWỌLÉ, 2017, p. 60, tradução nossa)

 

Ọ̀rúnmìlà

“Cada ser humano enviado à terra pelo Onipotente  deve se colocar diante do Òrìṣà para escolher sua benção, com a condição de que não possa escolher mais de uma benção. Seja qual for sua preferência ... seja a fortuna, esposas, filhos, qualquer forma de prosperidade ... A escolha é livre e ilimitada, a não ser pelo protocolo de um tipo para cada pessoa, não mais ... Nossa escolha divina determina nossa vida terrena. Uma escolha errada acima resulta em sofrimento abaixo.” Òyéku mèji (OLÚWỌLÉ, 2017, p. 61, tradução nossa)

Paralelos entre as Filosofias de Sócrates de Ọ̀rúnmìlà

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Importância da Filósofa e sua obra

Sophie Bọ́sẹ̀dé Olúwọlé disse em sua em sua conferência na Universidade Federal do Rio de Janeiro: “O caminho para frente, é voltando para casa” (OLÚWỌLÉ, 2018, transcrição e tradução nossa). Essa breve frase resume bem sua trajetória enquanto professora, pesquisadora e, principalmente, enquanto filósofa. Olúwọlé retornou para casa ao reencontrar as vozes de seus ancestrais e defender essas vozes enquanto filosofia.

Sua trajetória foi marcada por adversidades e pela superação das mesmas. Olúwọlé foi uma vítima da colonialidade que ainda tem suas marcas profundas no continente e nos povos africanos, impondo as culturas ocidentais como norma, reduzindo as culturas originárias africanas ao primitivismo e a irracionalidade. Olúwọlé era uma mulher preta, africana e estudante em instituições de ensino africanas, mas que ousou querer ir além, ousou querer estudar filosofia africana, um desejo o qual seus orientadores rejeitaram afirmando que tal coisa não existia. A colonialidade sufoca as vozes originárias e foi assim que Olúwọlé deve ter se sentido, sufocada e impedida de falar. No entanto, sua voz não seria calada por muito tempo.  

Embora seus títulos acadêmicos tenham sido alcançados com a pesquisa de pensadores brancos e ocidentais, Olúwọlé conseguiu algo inédito na história da África contemporânea: ser a primeira mulher com título de doutorado em filosofia na Nigéria e em toda a África Subsaariana. A conquista da Doutora Olúwọlé abriria para ela a oportunidade de dar os primeiros passos em direção de volta para casa, ou seja, em direção ao pensamento e às vozes de seus ancestrais. Mal ela sabia que sua conquista ajudaria a fortalecer a defesa da existência e do estudo das filosofias africanas, abrindo o caminho para que outras/os estudantes pudessem encontrar seus caminhos de volta para casa, de volta para as vozes de seus ancestrais. Em sua jornada, Olúwọlé viu através da concepção falaciosa de uma “filosofia” universal. Ela percebeu que a língua é um dos veículos da filosofia e que as filosofias do ocidente são feitas em línguas diversas como a grega e o latim na antiguidade ou como o francês, o alemão ou o inglês na modernidade e contemporaneidade, ou seja, Olúwọlé percebeu a pluriversalidade da filosofia e que uma das marcas dessa pluriversalidade é a língua. Com as filosofias africanas não poderia ser diferente. Os numerosos povos africanos com seus numerosos idiomas e dialetos produziram suas próprias filosofias, que representam suas diferenças e particularidades culturais. Olúwọlé chegou à conclusão que para ouvir as vozes de seus ancestrais e estudar suas filosofias é necessário aprender suas línguas para, assim, sorver suas palavras, conceitos e as filosofias contidas nelas. Foi isso que Olúwọlé fez quando se deparou com Ifá, a filosofia de Ọ̀rúnmìlà.

Como vimos, o encontro de Olúwọlé ocorreu, de forma aleatória, com os livros que sua filha deixou para ela quando se casou. Quando afilósofa leu versos dos Ojú Odù Ejogbe e Owonrin Meji na obra “Awon Oju Odu” de Wande Abimbola, ela ouviu as vozes de seus ancestrais, ela encontrou o caminho para casa que tanto procurara. Na Filosofia de Ifá composta por seus 256 Odù ou poemas, Olúwọlé encontrou, como ela mesma disse em sua conferência na cidade do Rio de Janeiro, um sistema filosófico complexo que trazia em seus versos filosofia, religião, matemática, física, lógica e computação.  Na conferência da UFRJ, a Filósofa destacou que não foram os brancos ocidentais que criaram o sistema computacional, mas que é em Ifá que encontramos a origem da computação. Segundo ela, para os ocidentais Ideia e Matéria existem de forma separada e irredutível, mas para Ifá os mundos Imaterial (Ọ̀run) e Material (Àiyé) embora distintos não são irredutíveis, mas complementares e que isso é o sistema computacional. Ora, o que é o sistema computacional? Uma união de software (o imaterial) e hardware (o material) que embora distintos não funcionam de forma separada, mas de forma complementar. Assim, para Ifá, a realidade é compreendida como um todo onde o Material e o Imaterial compõem a realidade como um todo. E essa realidade holística concebida por Ifá é o sistema computacional. Para Olúwọlé, a concepção da realidade é uma das grandes diferenças entre os pensamentos Ocidentais e Africanos, que ela nos mostra no estudo comparativo de sua Magnum Opus Socrates and Ọ̀rúnmìlà: Two Patron Saints of Classical Philosophy onde ao comparar as semelhanças e as diferenças entre os filósofos Sócrates e Ọ̀rúnmìlà, ela reconheceu as semelhanças e diferenças entre pensamentos africanos e ocidentais na figura de seus maiores expoentes, segundo a filósofa.

Nessa obra, Olúwọlé faz um estudo comparativo entre Sócrates e Ọ̀rúnmìlá, dois Filósofos que transmitiram seu pensamento de forma oral para seus discípulos. Como é amplamente sabido, Sócrates não deixou nada escrito, e tudo o que sabemos do Filósofo Heleno e seu pensamento, sabemos pelos registros de seus discípulos, em especial, Platão. Assim como Sócrates, Ọ̀rúnmìlá viveu em uma sociedade de tradição oral, portanto, o que sabemos do pensamento do Filósofo Yorùbá, vem da longa linha de discípulos e discípulos de seus discípulos, que foram passando a sabedoria de Ọ̀rúnmìlá de forma oral, de geração para geração, chegando até nós como um sistema filosófico e religioso que ainda é amplamente praticado e transmitido, tanto na África quanto na Diáspora, de forma ininterrupta por pelo menos 2.600 anos.

Como afirma Presbey (2020, p. 239), por seu vasto conhecimento e compreensão da filosofia contida nos Odù Ifá, Olúwọlé durante sua vida sempre esteve na mídia, em matérias sobre sua vida e sua obra e após sua morte sua presença na mídia aumentou. Presbey observa (Ibid.) que de acordo com uma rádio nigeriana muitas vezes quando se referiam à filósofa, o faziam pelo apelido de “Mamaláwo”, uma adaptação do termo “Babaláwo”. Babaláwo são os sacerdotes que interpretam os Odù Ifá através de sistemas oculares, ou seja, são os especialistas na filosofia de Ọ̀rúnmìlá que treinam durante muitos anos para memorizar os 256 Odù, interpretar seus mitos e manipular seus oráculos. O termo “babaláwo” é geralmente traduzido por “Pai do segredo”, assim, o apelido de Olúwọlé seria algo como “Mãe do segredo”. Segundo as tradições contemporâneas de Ifá seja na África ou na Diáspora, as mulheres não podem ser babaláwo, o que confere ainda maior importância para a esse apelido concedido a filósofa, pois se trata do reconhecimento de seu profundo conhecimento da filosofia de Ifá.  

A palavra yorùbá para “ser humano” é “ènìyàn” que literalmente significa “Aquela/e que escolhe” e essa escolha é Orí, a cabeça que, segundo Ifá é o receptáculo da personalidade e destino humano. Assim, para Ifá, escolhemos nossos destinos antes de nascermos, então, quando Olúwọlé se deparou com a obra Awon Oju Odu Mereerindinlogun de Wande Abimbola, não foi uma mera coincidência, mas uma obra do destino escolhido pela filósofa no Ọ̀run. Mas Ifá adverte em seus Odù que mesmo com a escolha de um bom destino, o mesmo não pode ser alcançado sem o empenho de Ìwà, do Bom Caráter, o que faz da escolha do destino um ato constante. Em sua vida, Olúwọlé enfrentou inúmeras adversidades que a impediram de encontrar a filosofia africana que buscava, mas ela nunca desistiu buscar a voz e a sabedoria de seus antepassados, ou seja, seu Ìwà, seu Bom Caráter nunca foi dobrado diante das dificuldades e quando ela finalmente encontrou a voz de Ọ̀rúnmìlá, empenhou seu caráter com ainda maior afinco para que essa voz ancestral fosse ouvida e reconhecida como o que ela é, como filosofia. Sophie Olúwọlé não foi apenas uma estudiosa de filosofias africanas, mas a mulher que estava destinada a ser a filósofa que deu ao pensamento de Ọ̀rúnmìlá o devido reconhecimento, um destino por ela mesma escolhido.   

Portanto, em sua vida e obra, Sophie Bọ́sẹ̀dé Olúwọlé foi uma filósofa que quebrou barreiras, como ser a primeira mulher a obter o título de Doutora em filosofia pela Universidade de Ibadan e por defender Ifá, como sistema filosófico e Ọ̀rúnmìlá como um filósofo da antiguidade. Em sua obra, assim como em sua vida, Olúwọlé buscou legitimar o pensamento africano, mostrando que as filosofias africanas não devem, em nada, às filosofias ocidentais e que, assim como Sócrates, Ọ̀rúnmìlá foi um filósofo cujo pensamento marcou a história da filosofia. Assim como os dois filósofos que ela compara, a filósofa Sophie Bọ́sẹ̀dé Olúwọlé também deixou sua marca na história da filosofia ao mostrar que, como Sócrates pode ser considerado como o “Santo Patrono” das filosofias ocidentais, Ọ̀rúnmìlá pode igualmente ser considerado como o “Santo Patrono” das filosofias africanas e que o eurocentrismo que impregna a academia não pode mais ofuscar a importância do pensamento africano nem de suas filósofas e filósofos.

 

Referências Bibliográficas

Obras da Filósofa

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______, African Myths and legends of Gender. Lagos: Nigeria. ARK Publishers, 2014. 

______, “African Philosophy as Ilustrated in Ifá corpus”. In: Imódòye: A Journal of African Philosophy 2 (2), 1996, pp. 1-20.

______, “Culture, gender and development theories”. In: Africa develpment 22, 1997, pp. 95-21. 

 ______, Democratic patterns and paradigms: Nigerians women’s experience. Lagos. Nigeria: Goethe-Institut, 1992.

______, Katanfuru: “Katanfuru: who are (we/they) Africans? Some memorable Questions”, CEFACAD, 2011.

______, “On the existence of witches”. In: African Philosophy: Selected readings. Ed. Albert G. Mosley. Englewood Cliffs. N. J.: Prentice Hall, 1995.

______, “Oruka and the sage philosophy: New insights on sagacious reasoning”. In: Handbook of African Philosophy, ed. Toyin Falola and Adeshina Afolayan. New Yorek Palgrave MacMillan, 2017. 

______, “Oruka’s misson in African philosophy”. In: Sagacious reasoning: Henry Odera Oruka in memoriam, ed. Anke Graness and Kai Kresse. Nairobi. Est African Educational Publishers, 1999. 

______, Philosophy and Oral Tradition. Lagos, Nigeria: African Researche Konsultancy, 1997.  

______, “Public health and the individiual right to sexual pleasure and choice”. In: Sexuality in Africa 3 (2), 2006, pp. 6-8.

 

______, Sócrates and Ọ̀rúnmìlá: Two Patron Saints of Classical Philosophy. 3rd ed. Lagos, Nigeria: ARK Publishers, 2017.

______, “The best of both worlds: Philosophy in African Languages and English translation”. In: APA Newsletter on Indigenous Philosophy16 (2), 2017, pp. 7-14.

OLÚWỌLÉ, Sophie Bọ́sẹ̀dé; SOFOLUWE, Akin. African myths and legends of gender. Lagos Nigeria. ARK Publishers, 2014. 

______, Witchcraft, reincarnation and the god-head. New Delhi: Excel Publishers, 1992.  

______, “Womanhood and feminism in african traditional thought”. In: Character is beauty: Redefining Yoruba culture and identity (Iwalewa-Haus 1981-1996), ed. Femi Abodurin, Olu Ofemi and Wole Ogundele. Trenton, N. J.: Africa World Press, 2001.

Trabalhos Acadêmicos sobre a Filósofa

DASAOLU, Babajide Olugbenga; FAYEMI, Ademola Kazeem. “Oral Tradition in African Philosophy Discourse: A Critique of Sophie Oluwole’s Account”. In: The African Symposium: An Online Journal of the African Educational Research Network, volume 15, n° 1, 2015, pp. 57-68.

FAYEMI, Ademola K. “Remembering the African Philosopher, Abosede Sophie Oluwole: A Biographical Essay”. In: Filosofia Theoretica: Journal of African Philosophy. Culture and Religions vol. 7 n° 3 (Dedicated to the late Prof. Sophie Oluwole), 2018, pp. 118-131.

KIMMERLE, Heinz. An Amazing Piece of Comparative Philosophy. Sophie Bọ́sẹ̀dé Olúwọlé: Sócrates and Ọ̀rúnmìlá: Two Patron Saints of Classical Philosophy. Lagos: ARK Publishers, 2014, 224p. Book Review. In: Filosofia Theoretica: Journal of African Philosophy. Culture and Religions vol. 3, n°2, 2014.

PREBSEY, Gail. “Sophie Olúwọlé’j major contributions to African Philosophy”. In: Hypatia, n. 35, Cambridge University Press, 2020, pp. 231-242. 

Links Úteis

ADEBUMITI, Adewolo. “Philosopher Nigerians to embrace indigenous knowledge, languagues”. In: https://guardian.ng/art/philosopher-urges-nigerians-to-embrace-indigenous-knowledge-languages/ 2016, acesso em 2022.

AJELUORO, Anote. “Socrates and Orunmila ... Putting Premuim On Africa’s Indigenous Philosophy”. In: https://guardian.ng/art/socrates-and-orunmila-putting-premium-on-africas-indigenous-philosophy/  2015, acesso em 2022.

LASISI, Akeem. Salute to Orunmila as Sophie Oluwole hosts Dutch film-maker. In:  https://punchng.com/salute-to-orunmila-as-sophie-oluwole-hosts-dutch-film-maker/ 2017 acesso em 2022. 

NORTHUSSEN, Seada. “De wertese filosofie loopt al eeuwen achter” In:  https://www.trouw.nl/nieuws/de-westerse-filosofie-loopt-al-eeuwen-achter~b92ab8e9/ 2017, acesso em 2022.

NWAKUNOR, Gregory Austin; DANIEL, Eniola. “Top African Philosopher, Sophie Oluwole, dies at 82”. In: https://guardian.ng/features/top-african-philosopher-sophie-oluwole-dies-at-82/ 2018, acesso em 2022.

OBE, Taiwo. “She who was diferente: Sophie Oluwole, 1935-2018” In: https://medium.com/@araisokun/she-who-was-different-adccb087c91b 2018, acesso em 2022.

OLÚWỌLÉ, “Conferências Africanas: semana de Ooni de Ifé no Rio”. Universidade Federal do Rio de Janeiro In: (6) Final Sequence 2 com trecho - YouTube , acesso em 2022.

OLÚWỌLÉ, S. B. 2014. Entrevista concedida a Adesina Anidugbe e Tunde Sodeke. ̣HotSeat. OGTV, https://www.youtube.com/watch?v=ExKGqmnRfuM&t=959s  Oro Isiti (vídeo série). Episódio 1: Importance of the mother tongue; Episódio 2: Ifá is a scientific and mathematical system?; Episódio 3: What is education in Nigeria?; Episódio 4: You are a stupid idiot if you condemn the whole of your culture; Episódio 5: Orunmila and Socrates: What do they have in common?; Episódio 6: Are herbal preparations fetish?Lagos,Nigeria:Tundekelani.tv.In:https://www.youtube.com/results?search_query=Oro+Isiti, acesso em 2022.

OJOYE, Taiwo. “My mum never believed I could become a professor _ Sophie Oluwole”. In: https://punchng.com/mum-never-believed-become-professor-sophie-oluwole/ 2017, acesso em 2022.

______, Buhari, Tinubu, Ofeimun mourn as Sophie Oluwole dies at 83” In: https://punchng.com/buhari-tinubu-ofeimun-mourn-as-sophie-oluwole-dies-at-83/ 2018, acesso em 2022.

 

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