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Uma análise normativa da raiva enquanto uma emoção moral

LETÍCIA BELLO (UFSM)

letticiasbello@hotmail.com

Dissertação de mestrado

Data prevista de defesa: 21/08/2021



Se meu colega me desrespeita em um ambiente profissional simplesmente pelo fato de eu ser mulher e eu fico com raiva dele, é consenso que minha raiva é bem fundamentada. Aristóteles já define a raiva como uma resposta a uma ofensa causada ao sujeito ou a alguém do círculo de importância do sujeito. Compreendida dessa forma, a emoção não parece ser problemática, e grande parte da filosofia feminista concordaria que a raiva é uma emoção válida como resposta a casos de sexismo. Aristóteles, no entanto, adiciona o componente de retribuição intrínseco à emoção, isto é, além da raiva ser uma resposta a uma ofensa, ela é uma resposta acompanhada de um desejo de retribuição ao ofensor.


A partir dessa definição, a filósofa Martha Nussbaum (2016) analisa a emoção e afirma que, por seu componente de retribuição, a raiva acaba por ser contraproducente para qualquer vítima de ofensas ou mesmo de injustiças. Se, por exemplo, quando eu sinto raiva do meu colega por ter me desrespeitado no trabalho, eu começo a planejar formas de me vingar dele, de o humilhar na frente do seu chefe, ou de fazê-lo perder seu emprego, esse componente retributivo tende a me deixar obsessiva e, em última instância, é muito provável que seja contraprodutivo para melhorar a minha condição no trabalho, na medida em que a minha busca por retribuição pode prejudicar minha seriedade no ambiente de trabalho, por exemplo.


Para um olhar desatento, o debate sobre a raiva aparenta expressar uma polarização entre aquelas autoras que a defendem enquanto uma emoção moral e aquelas que acreditam que a raiva deve ser evitada para se ter uma vida virtuosa. Esse contraste no debate contemporâneo é pensado especialmente a partir da tese de Martha Nussbaum, que argumenta que a emoção é majoritariamente contraprodutiva e enfatiza sua necessidade de ser substituída por emoções mais generosas, como o perdão. Seguindo Nussbaum, muitas pensadoras atuais se dedicaram a estudar a raiva, a maioria delas pensando o debate a partir da análise de grupos sociais oprimidos, como é o caso de Amia Srinivasan (2017), de Céline Leboeuf (2018), de Myisha Cherry (2018), de Alessandra Tanesini (2019) e de Agnes Callard (2020).


Martha Nussbaum é uma das filósofas que compreendem a raiva através de sua razão instrumental, ou seja, a filósofa analisa os efeitos da raiva na sociedade. Dentro dessa mesma categoria de análise, Céline Leboeuf (2018) argumenta que a raiva é, ao contrário, uma emoção instrumentalmente valiosa, na medida em que auxilia vítimas de injustiças a resistir à sua opressão. Leboeuf analisa casos de opressão racial e conclui que a raiva, mesmo com o componente de retribuição, é uma arma para que o indivíduo oprimido não internalize a narrativa racista que lhe é atribuída. Em conformidade com Leboeuf, existe uma vasta tradição de lutas antirracistas que usa a raiva como uma emoção essencial, como é o caso de Audre Lorde que, em seu célebre texto “The Uses of Anger” (1981), defende a raiva como uma resposta válida ao racismo que sofre, e que, ao aprender a expressar essa raiva, foi capaz de crescer enquanto mulher negra em ambientes sexistas e racistas.


Além dessas autoras que analisam a raiva através de seus efeitos na sociedade, existe uma gama de filósofas que compreendem a validade da raiva como uma emoção em si mesma. Amia Srinivasan (2017) é uma dessas filósofas que argumentam a favor da emoção afirmando que, mesmo contraproducente como afirma Nussbaum, a raiva é apropriada na vida moral simplesmente por ser uma resposta cabível ao modo como o mundo é. Segundo a autora, quando eu sinto raiva do meu colega de trabalho, eu sou capaz de apreciar a injustiça que me foi feita, e dessa forma consigo, de fato, sentir o sexismo que me afeta socialmente. Para Srinivasan, é uma validade moral que o ser humano seja capaz de sentir as injustiças do mundo.


Dentro desse debate ético-normativo sobre a raiva é possível destacar duas características importantes. Primeiro, a raiva pode ser uma emoção valiosa em si mesma. Macalester Bell (2009) afirma que uma pessoa de caráter virtuoso é aquela que ama o bom e odeia o mau, e afirma que a raiva é uma forma de odiar o mau. Dessa forma, a raiva, enquanto ódio à injustiça, é um traço virtuoso do indivíduo. Segundo, a raiva pode ser contraprodutiva para vítimas de injustiças. Se eu sei, por exemplo, que meu chefe é amigo íntimo do colega que me ofendeu, e sei de fato que eles costumam assistir futebol todos os domingos juntos, é muito provável que minha retribuição vá me prejudicar em relação ao meu chefe e, assim, prejudicar minha condição no trabalho. A minha raiva, então, apesar de parecer ser uma resposta cabível à situação, não irá melhorar a minha condição.


A partir desse debate tão complexo e rico dentro da ética contemporânea, o presente trabalho sistematiza essas teses de forma que seja possível compreender o que cada autora está argumentando, a partir da divisão conceitual entre a validade instrumental da raiva e o valor da raiva em si mesma. Através dessa sistematização pretende-se possibilitar a análise de como o contexto político-social, especificamente a análise de grupos que são oprimidos por conta da raça e do gênero, tem implicação para o debate ético-normativo sobre a raiva.

É notável que essas relações de dominado-dominante são centrais em muitos argumentos em relação à raiva enquanto uma emoção moral valiosa, desde Leboeuf que aborda como a raiva é essencial para pessoas negras que vivem em uma sociedade racista, até Callard que argumenta a partir da narrativa entre semitismo e nazismo. Por outro lado, nota-se também que Martha Nussbaum, ao argumentar que a raiva é uma emoção contraproducente em sua obra de 2016, não enfatiza o papel dedicado à raiva de transição como uma emoção instrumentalmente importante para grupos oprimidos, mas que em seu ensaio publicado recentemente em 2020, a autora indica que esse tipo de raiva possui um papel interessante na luta por libertação.


O que todas as autoras parecem sugerir, e especialmente Nussbaum que argumenta acerca dos efeitos condenáveis da raiva retributiva e obsessiva, é que ao tirar seu componente retributivo, a raiva não parece tão condenável. Aristóteles já especifica que a raiva em si não é viciosa, mas que em sua forma livre de retribuição ela é virtuosa, ao passo que um sujeito que não sente raiva em frente a um desrespeito é um tolo. Nussbaum denomina essa raiva sem o desejo de retribuição como raiva de transição, e Leboeuf que, inicialmente não condena o componente retributivo, conclui afirmando que o sujeito com raiva deixa de lado a busca por vingança e a preocupação com seu próprio status e, em última instância, a raiva que inicia com o desejo de retribuição acaba por ter um papel similar ao que Nussbaum remete à raiva de transição. Srinivasan, ao falar sobre o componente de retribuição, sugere que a raiva contemporânea parece ter diferido da forma como os antigos compreendem a emoção, e que é muito comum hoje pensar na raiva sem o desejo de vingança. Bell também compreende a raiva enquanto um ressentimento, na medida em que aborda uma raiva virtuosa na concepção aristotélica, aquela raiva que não se entrega ao desejo de vingança. Cherry, de modo semelhante, separa o componente moral da raiva.


Essas autoras, aparentemente, possuem divergências intensas, mas seus argumentos parecem convergir quando pensam na condenação ou contraprodutividade do desejo de retribuição que torna a raiva obsessiva e viciosa, ao mesmo tempo que parecem ter consenso também sobre pelo menos um tipo de raiva ter importância em determinados contextos sociais. É notável também que a maioria dessas autoras analisa a raiva a partir de contextos de injustiças sociais. Mesmo Nussbaum, ainda que de forma menos enfática, analisa a raiva de transição em Marthin Luther King e sua luta contra o racismo. O contexto social, especialmente os fenômenos de racismo e de sexismo, estão presentes de maneira muito intensa no debate ético-normativo sobre a raiva.


A pergunta não é, portanto, se a raiva é uma emoção moralmente valiosa, e sim quais componentes da emoção são moralmente valiosos e em quais contextos a raiva é compreendida como uma emoção virtuosa. Através do debate estruturado pelas autoras Martha Nussbaum, Céline Leboeuf, Amia Srinivasan e Macalester Bell, pretende-se analisar quais componentes da raiva parecem ser moralmente desejáveis para uma vida moral e em quais contextos a emoção parece ser melhor apreciada como uma excelência moral.



Bibliografia primária

BELL, Macalester. Anger, Virtue and Oppression. In: TESSMAN, Lisa (org). Feminist Ethics and Social and Political Philosophy: Theorizing the non-ideal. Springer Science. New York: 2009. pp. 165-185.

LEBOEUF, Céline. Anger as a Political Emotion: a Phenomenological Perspective. In: CHERRY, Myisha; FLANAGAN, Owen (org). The Moral Psychology of Anger. Rowman & Littlefield International, 2018.& Littlefield International, 2018. pp. 15-30.

LORDE, Audre. The Uses of Anger: women responding to racism. Women's Studies Quarterly, Vol. 25, No. 1/2, pp. 278-285. New York, 1997.

NUSSBAUM,‌ ‌Martha.‌‌ ‌Anger‌ ‌and‌ ‌Forgiveness:‌ ‌Resentment,‌ ‌Generosity,‌ ‌Justice.‌‌ ‌New‌ ‌York:‌ ‌Oxford‌ ‌university‌ ‌Press,‌ ‌2016.‌

SRINIVASAN, Amia. The Aptness of Anger. Londres: John Wiley & Sons Ltd, 2017

Bibliografia secundária

CALLARD, Agnes. On Anger. Boston: Boston Critique, Inc: 2020.

CHERRY, Myisha. The Errors and Limitations of our “Anger Evaluating” Ways. In: CHERRY, Myisha; FLANAGAN, Owen (org).The Moral Psychology of Anger. London: Rowman & Littlefield International Ltd, 2018. p. 49-68.

TANESINI, Alessandra. Passionate speech: on the uses and abuses of anger in public debate. Royal Institute of Philosophy London Lecture, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mgM3CM51h9U&t


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