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  • A pandemia e o apartheid sanitário no Brasil

    Carla Maria Peixoto Pereira Doutoranda em Desenvolvimento Socioambiental PPGDSTU/NAEA da Universidade Federal do Pará (UFPA). Professora da Escola Superior da Amazônia. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa (CNPq) MinAmazonia - Mineração e Desenvolvimento Regional na Amazônia. Loiane Prado Verbicaro Professora da Faculdade de Filosofia e do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito. O tema de hoje refere-se à perversa correlação entre a pandemia no Brasil, a extrema pobreza e a desigualdade social, a partir da análise do apartheid sanitário, que faz com que as condições de higiene sejam um luxo não acessível a maior parte da população. Antes de analisarmos a questão do saneamento básico, importante tecer algumas observações sobre aspectos da nossa estrutura econômica e social. A economia brasileira é a maior da América Latina e uma das dez maiores do mundo. Mas ao longo da sua história desperdiçou inúmeras oportunidades de implementar uma agenda efetivamente igualitária e que, ao mesmo tempo, permitisse a criação de uma infraestrutura sanitária adequada. A realidade é que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, “com uma pobreza totalmente evitável que reduz a expectativa e a qualidade de vida de dezenas de milhões de pessoas.” O desenvolvimento econômico brasileiro foi historicamente perverso porque aumentou as desigualdades estruturais e sociais (SAAD FILHO; MORAIS, 2018, p. 19, 20). Nos intervalos de uma república oligárquica, uma ditadura populista de direita e uma ditadura militar, democracias foram fragilmente concebidas. Na década de 1980, a promessa democrática e inclusiva consolidou-se na Constituição de 1988, estruturada sob a base de um Estado de bem-estar social. No entanto, a realização democrática foi limitada, na medida em que o avanço da cidadania ocorreu ao lado da reprodução de uma sub-cidadania e de expressivos privilégios econômicos. A transição para o neoliberalismo, que constituiu um processo multissetorial de liberalização, aprofundou a exclusão, fomentou a financeirização do capitalismo e a precarização das condições de vida e trabalho, sobretudo por desconsiderar progressivamente as condições humanas de vida, o acesso democrático à política e limitar o espaço para a distribuição equânime de renda e riqueza baseada na inclusão social e na cidadania. A partir dessa breve introdução, passemos à nossa análise. Começamos fazendo referência à obra literária “O Cortiço”, do autor maranhense Aluísio Azevedo, lançada em 1890. Na obra, o escritor conta a história de João Romão, um comerciante cujo maior objetivo era ascender na sociedade carioca. Dono de uma taverna e uma pedreira, João também era o proprietário de um cortiço, que não detinha qualquer acesso à água potável ou esgotamento sanitário por parte de seus habitantes, que eram, em sua maioria, seus empregados na pedreira e clientes na taverna. Apenas quando o cortiço sofreu um grande incêndio, João resolveu reformá-lo para que se tornasse a vila João Romão, tendo sido acrescentados para tal, com grande festa, seis vasos sanitários e torneiras de água, bem como construídos três banheiros para serem utilizados coletivamente. Como mencionado, esta curta síntese integra um relato literário do final do século XIX. No entanto, ainda que se tenham registros históricos de água encanada até mesmo na Roma antiga, não é desafio algum identificar, em nossas cidades contemporâneas brasileiras, moradias tais como as descritas por Azevedo há mais de 100 anos: sem serviços de acesso à água potável e de coleta e tratamento dos esgotos. Há no Brasil um déficit sanitário, em descompasso com as disposições normativas da lei do saneamento, que prevê um conjunto dos serviços, instalações operacionais de abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais como infraestruturas necessárias à população e condição para a implementação do direito à saúde. O Instituto Trata Brasil apontou que quase 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada e quase 100 milhões de brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto, o que significa um impacto negativo na saúde coletiva. Apesar dos dados que demonstram que o investimento em saneamento é fundamental à saúde pública ao reduzir o índice de mortalidade (principalmente a infantil) e a sobrecarga do sistema do saúde, ademais de ser benéfico para o turismo, preservar recursos hídricos, valorizar bens imóveis, entre outras vantagens advindas de um sistema sanitário pleno, as políticas públicas no Brasil, reiteradamente, não priorizam esse investimento em razão dos altos custos e da aposta em direcionamentos de gastos com perspectivas mais eleitoreiras. Momentos epidêmicos acentuam os nossos problemas e mazelas, aprofundando-os. Nesse sentido, a pandemia do novo coronavírus tem lançado novas luzes sobre o imenso déficit de saneamento no país. Tem-se, há muito, uma crise sanitária: vive-se no Brasil de 2020 tal como no cortiço de Romão de 1890. Foi necessária a propagação mundial de um novo vírus com alta taxa de mortalidade, o qual não se tem vacina ou protocolo de tratamento consolidado, com alto grau de transmissibilidade e cujas principais estratégias de combate, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, são lavar as mãos com água limpa e sabão e se manter em casa (e aqui, se tem como premissa um ambiente hígido), para que percebamos a realidade da grande maioria dos 210 milhões de brasileiros, de como (sobre)vivem. Importante a reflexão segundo a qual este déficit sanitário pode se traduzir enquanto um instrumento de necropolítica estatal e do capital, que delineiam a morte social daqueles que não têm condições financeiras de habitar locais beneficiados pelas intervenções urbanas de saneamento, demonstrando que o assunto é bem mais complexo do que se considera à primeira vista. Logo, percebe-se que a questão sanitária e seu déficit também engloba aspectos ambientais, sociais, econômicos e políticos, que ingressam no campo de uma análise mais abrangente e demandam uma leitura sistêmica interdisciplinar do espaço urbano, cujo valor de mercado dado pelo capital avilta, rotineiramente, a vida de todos. A forma de produção capitalista do espaço urbano, já há tanto estabelecida, que passa a ter seus resultados desiguais vistos como normalidade, se torna ainda mais cruel quando estamos diante de uma pandemia que, confrontada com a falta de acesso de serviços básicos sanitários, acena à profunda desigualdade das nossas estruturas. O problema da urbanização segregadora e excludente não é recente. Engels denunciava, no início do capitalismo industrial, as consequências deste sistema econômico na cidade, que se tornam mais avassaladoras por conta da globalização e da homogeneização do espaço. O Brasil, sendo periferia do mundo com seu capitalismo tardio, se rendeu ao ideal neoliberal de que serviços básicos devem ser fornecidos pela iniciativa privada, o que tem levado a uma discussão já bem avançada de que o saneamento básico deve ser provido por consórcios de empresas privadas, o que provavelmente intensificará a atual crise sanitária, uma vez que nem todos os municípios brasileiros apresentam potencial de lucro e, consequentemente, interesse para os consórcios. Isso porque nem sempre a política necessária é também lucrativa, o que pode conduzir à persistência das nossas assimetrias. Neste cenário, falar de crise sanitária no espaço urbano, particularmente durante uma pandemia tão grave, é também falar de déficit de direito à cidade, onde existem muitos cidadãos que nem sempre conseguem exercer sua cidadania por conta do aviltamento dos seus direitos fundamentais sanitários. A escolha deste modelo de desenvolvimento, traduzida na produção capitalista do espaço e que prioriza o viés econômico e tende a colocar questões sociais e ambientais (como a sanitária) em plano secundário, afeta a liberdade da cidade e sua relação com as ações de enfrentamento à pandemia, pois que não é possível que se dissocie o tipo de pessoa que cada um deseja ser do tipo de cidade que cada um almeja habitar. Esta relação se impõe porque o homem é diretamente influenciado pelos espaços em que circula e que o ajudam a definir as suas possibilidades de vida, sendo determinante, para isso, a existência de um ambiente urbano hígido universal, que está em completo desacordo com a nossa realidade. Desta forma, tal como a concepção original de Henry Lefebvre, o direito à cidade continua se afirmando como apelo e como exigência, sendo uma problematização urgente em relação aos espaços urbanos nesses tempos de pandemia. O fato é que momentos de crise testam nossas escolhas e nosso projeto de vida coletiva e dependendo da nossa capacidade de reinvenção e de recomeço, podemos perpetuar o trágico da realidade, que numeraliza e banaliza a morte, ou construir novos caminhos. Que sejamos capazes de transformar o relato de Aluísio Azevedo no “O Cortiço” em distopia impensável nos nossos novos tempos. #redebrasileirademulheresfilosofas #filosofasOrg #filosofaemquarentena #apartheidsanitario #pandemia Referências AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Klick Editora, 1997. ENGELS, Friedrich. Sobre a questão da moradia. São Paulo: Boitempo, 2015. HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005. HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Boitempo Editorial, Carta Maior, 2013. HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2014. INSTITUTO TRATA BRASIL. Principais estatísticas sobre saneamento no Brasi. Disponível em http://www.tratabrasil.org.br/saneamento/principais-estatisticas. Acesso em 18 abr. 2020. LEFEBVRE, Henri et al. Du contrat de citoyenneté. Paris: Syllepse et Périscope, 1990. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 3ª ed. São Paulo: Centauro, 2001.Marx MBEMBE, Achille. Necropolítica. Revista Artes & Ensaios, número 32, dezembro/2016. SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: Neoliberalismo versus Democracia. São Paulo: Boitempo, 2018. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

  • Simone de Beauvoir por Heci Regina Candiani

    “O fato de existirem desigualdades entre as pessoas faz com que a ação realmente ética seja, então, não apenas aquela que visa ampliar a liberdade do sujeito, mas que se paute pelo compromisso em ampliar também a liberdade dos outros.” (Heci Regina Candiani) Ensaios, tratados, uma peça de teatro, um manifesto, romances, contos, novelas, relatos de viagem, memórias, cartas, diários e reportagens: a obra de Simone de Beauvoir é vasta, múltipla, ativa, desafiadora. Heci Regina Candiani apresenta, no verbete com que contribui ao Blog Mulheres na Filosofia, um pouco da vida e das ideias desta que é a mais célebre entre as pensadoras da condição feminina. Ele mostra como, desde os seus primeiros escritos, as questões da liberdade e da condição humana espaço-temporalmente situada são centrais. Dessa atenção surge O Segundo Sexo, obra magistral em que, com base no existencialismo, na fenomenologia e no marxismo, a autora se debruça sobre as experiências das mulheres nas sociedades ocidentais em meados do século XX. O resultado é um enfoque mordaz sobre a opressão como a ação do Outro, uma análise que abriu caminho para toda uma vertente do pensamento feminista. O verbete também mostra como esse tema da marca social da alteridade volta em outros textos de Beauvoir, como em A velhice, obra que aborda o envelhecimento como transformação no modo como somos objetificados nas relações interpessoais. Conduzindo-nos com clareza pelos conceitos, esse verbete é uma bela porta de entrada para uma reflexão aguda sobre a desigualdade, feita através de um método filosófico que emerge da vida e da história. Heci Regina Candiani é Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP, tendo defendido a tese “A tessitura da situação: a trama das opressões na obra de Simone de Beauvoir”. É autora de artigos sobre Beauvoir e tradutora para o português de importantes autoras como Angela Davis, Nancy Fraser e Silvia Federici.

  • Conversas Feministas

    O Conversas Feministas é uma das atividades realizada pelo Grupo de Pesquisa Epistemologias Afetivas Feministas CNPq/PUCRS. Na conversa de hoje debatermos sobre o Feminismo Decolonial de María Lugones e teremos a participação especial da Profa. Dra. Susana de Castro (UFRJ). Inscrição e dúvidas entrar em contato no email: epistemologiasfeministas@gmail.com

  • “A Constituição sou eu”: a pandemia e o acirramento da crise democrática

    Ana Victória Machado Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Pará e integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito – FilPED. Loiane Prado Verbicaro Professora da Faculdade de Filosofia e do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenadora do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito – FilPED. O tema de hoje aborda a pandemia e o acirramento da crise democrática. O Grupo de Pesquisa (CNPq): “Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito”, vinculado à Faculdade de Filosofia e ao Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA), vem estudando, desde 2016, a crise democrática brasileira, com a compreensão de que pode haver o formal funcionamento das instituições democráticas concomitantemente ao desaparecimento da sua dinâmica. Nesse sentido, democracias podem entrar em falência mesmo permanecendo, formalmente, intactas. Motivadas pelo episódio do último domingo, dia 19 de abril, quando, em descumprimento às recomendações das autoridades sanitárias, pessoas reuniram-se (aglomeraram-se) para ato em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, em apoio ao Governo Federal, escrevemos as reflexões a seguir. Quando, em meio à guerra de combate ao vírus contra o qual nenhum país no mundo está preparado, muito menos o Brasil em razão das suas profundas desigualdades e negligência com a infraestrutura sanitária, um Presidente vai às ruas, contrariando todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), para discursar em ato de apoiadores pró-intervenção militar, marcado por faixas e gritos de volta ao AI5, intervenção militar, fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, é preciso pensar que a pandemia não é a única ameaça a ser enfrentada. Em seu pronunciamento, o Presidente disse acreditar nas reivindicações dos manifestantes que promoviam apologia à ditadura e afronta às instituições democráticas. Dia seguinte, chegou a dizer que é contra o fim da democracia e completou, paradoxalmente, “Eu sou, realmente, a Constituição”, numa versão atualizada do Rei Luís XIV, o Rei-Sol, conhecido pela oração “Je suis la Loi, Je suis l’État; l’État c’est moi” (Eu sou a lei, eu sou o Estado; o Estado sou eu!) em referência à centralização do poder na figura do Rei, no século XVII. A escalada antidemocrática é cada vez mais uma realidade no Brasil. O sinal de alerta da democracia brasileira reluz em vermelho, de modo que a reação à fala do Presidente foi imediata entre os representantes dos poderes e principais instituições do país: além da imprensa, reações do Presidente da OAB, Presidente da Câmara e Deputados da base e oposição, Ministros do STF, Governadores, e Associações de Juízes foram divulgadas nas primeiras horas posteriores ao ato, com discursos alinhados em reação à postura infesta do Presidente de “atiçar grupelhos para atacar a Constituição, as instituições democráticas e o regime democrático” como registra o repúdio de Flávio Dino, Governador do Maranhão. Com a pandemia do novo coronavírus, conflitos que permeiam os processos de desdemocratização no mundo tem-se intensificado. Se antes desse momento epidêmico, discutia-se inúmeras teses que apontavam para um esvaziamento democrático ou mesmo à insurgência de regimes pós-democrático ou protototalitários, com todos os instrumentos da racionalidade neoliberal, da necropolítica e do autoritarismo, hoje alguns destes questionamentos ganham novos matizes e cores. Tomando-se como ponto de partida o pensamento de Rubens Casara, que defende ser a sistemática de crises não mais uma excepcionalidade, mas sim um modus operandi do neoliberalismo e do Estado Pós-democrático, pode-se considerar que a crise econômica e sanitária relacionada à pandemia acena, contraintuitivamente, ao fortalecimento da lógica neoliberal, a partir da implementação de uma agenda de austeridade fiscal, reforma administrativa e privatizações para a recomposição dos gastos públicos no momento agudo da crise, com processos mais intensos de flexibilização e relativização de direitos e garantias fundamentais, como os direitos trabalhistas e políticas públicas redistributivas. Casara, amparado no cientista político Colin Crouch, define o Estado Pós-Democrático como aquele composto pelos seguintes elementos: reaproximação do poder político com o poder econômico, crescimento do autoritarismo, a autoexploração do indivíduo, o desaparecimento das grades institucionais ao exercício do poder e a demonização de políticas participativas e coletivas. Destas características, entende-se que a depender da postura adotada pelos líderes mundiais e pela mobilização social, poderá haver uma intensificação do Estado Pós-Democrático em meio a pandemia e discursos que realçam a priorização da economia, a exemplo da fala do Presidente do Banco Central do Brasil que afirmou, em reunião com investidores do mercado, que “reduzir o número de mortes por Covid-19 pode ser pior para a economia”; da campanha “Milão não pode parar”, apoiada pelo Prefeito de Milão no início da pandemia, posicionamento do qual se arrependeu após a cidade italiana alcançar milhares de mortes pelo Covid-19; do pedido do Presidente Alexander Lukashenko, da Bielorrúsia, para que a polícia secreta procure os “sem vergonha que estão a propagar o pânico”. É dele também a recomendação de combater o vírus com vodka e sauna. Infelizmente não são casos isolados, mas permeiam a opinião de outras autoridades públicas que minimizam a pandemia equiparando-a a uma “gripezinha”, conforme estouvada fala em cadeia nacional do Presidente do Brasil, que insiste em representar o contraexemplo da postura de um estadista preocupado com a centralidade do valor da vida humana; além da classe empresarial e setores que a apoiam, o que, para a autora Wendy Brown (2019, p. 40) representa os reflexos da postura de “consertar o governo por meio de ideias oriundas dos negócios”, isto é, tratar vidas como números, corpos como instrumentos de lucro, marketing, exploração e manipulação. Na história, observa-se o capitalismo reinventar-se através da superação das periódicas crises que abalam o sistema, até o momento em que o cenário de excepcionalidade passa a constituir a condição de seu fortalecimento, a partir da adoção de medidas de austeridades que converteram-se em um modo de governo (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 7). Nesse sentido, não causa espanto que teóricos como Han (2020, p. 110) sustentem que após a crise, o capitalismo continuará com mais vigor, amparado em regimes cada vez mais autoritários e com amplos mecanismos de controle repressivo por parte dos Estados. Essa situação é potencializada pela circunstância atípica de isolamento, que não apenas enclausura e distancia as pessoas, em uma abdicação a qualquer sentimento de coletividade – já praticamente ausente na lógica neoliberal –, como também robustece o individualismo a partir de uma disputa de todos contra todos pela sua própria sobrevivência. Por outro lado, algumas premissas características da racionalidade neoliberal, como o obscurantismo, a negação do conhecimento científico e mesmo a figura do homo economicus – empresário de si mesmo –, veem-se questionadas, em especial porque a pandemia mostrou o preço – não apenas monetário – de o mercado primar pelo privado em detrimento do suporte público. A pandemia agudiza a percepção de incompatibilidade de um modelo econométrico com a defesa de uma agenda igualitária e baseada na ampliação da cidadania, que potencializou o desamparo dos mais vulneráveis em razão do esvaziamento dos programas assistenciais e de redistribuição considerados nefastos em “governos de finanças”. Agora, a situação de crise escancara a necessidade de um Estado mais atuante. Essa percepção é defendida inclusive por aqueles que outrora propagavam a nocividade e a demonização do Estado. A pandemia tem acenado à insustentabilidade da globalização na ausência de uma infraestrutura social de saúde pública, o que passa pela implementação de políticas sociais e pela construção de um projeto político, econômico e social comum. Em razão de seus limites, Žižek (2020, p. 27) defende a ideia segundo a qual a pandemia representa um golpe de morte ao capitalismo. Isso porque o vírus demonstrou que a salvação da humanidade está no poder de solidariedade e colaboração de todos, algo que acena a uma nova era, com a colaboração global na promoção de um processo de regulamentação econômica, em aversão à selvageria do capitalismo, a qual vem mostrando ao mundo que atitudes como as do Presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, em articular o desvio de aparelhos respiradores e máscaras e realizar cortes substanciais das doações, em plena pandemia, a uma entidade tão fundamental como a Organização Mundial da Saúde (OMS), hoje não condizem com as exigências de solidariedade para se ultrapassar uma das maiores crises sanitárias e humanitárias dos últimos tempos. Percebe-se que não é apenas o sombrio cenário da doença que causa tantas angústias e questionamentos, mas, também, a (in) certeza de que o mundo tal qual era conhecido antes da eclosão do novo coronavírus jamais será o mesmo. Nesse sentido, a atual conjuntura disruptiva aponta para necessidade de uma profunda reflexão, especialmente, para avaliar fenômenos como a intensificação do autoritarismo; a incapacidade de um constitucionalismo nacionalista em responder a tantas questões que extrapolam os limites territoriais do respectivo país; os limites da globalização sem um projeto coletivo de humanidade e solidariedade; os discursos que tentam atenuar as consequências da pandemia em razão dos impactos econômicos; a necropolítica das epidemias que, no Brasil, tem um potencial catastrófico especialmente em relação aos atingidos pelos vários marcadores de opressão; e a desproteção social a partir da priorização às políticas de austeridade fiscal, o que acena a um profundo acirramento da crise das instituições democráticas nesse cenário de excepcionalidade e indeterminação. #redebrasileirademulheresfilosofas #filosofasOrg #filosofaemquarentena #crisedemocrática #pandemia REFERÊNCIAS BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politéia, 2019. CASARA, Rubens. Estado Pós-Democrático: Neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. CROUCH, Colin. Posdemocracia. Madrid: Taurus, 2004. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016. HAN, Byung-Chul. La emergência viral y el mundo de mañana. In: Sopa de Wuhan: Pensamiento Contemporáneo en Tiempos de Pandemias. Buenos Aires: Pablo Amadeu Editor. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020. ZIZEK, Slavoj. El coronavirus es um golpe al capitalismo a lo Kill Bill. In: Sopa de Wuhan: Pensamiento Contemporáneo en Tiempos de Pandemias. Buenos Aires: Pablo Amadeu Editor. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.

  • Introdução ao Feminismo por Ilze Zirbel: disponível em nosso canal a primeira aula do curso.

    Assista aqui. Ilze Zirbel trata da definição de feminismo, das suas diversas ondas e de alguns de seus conceitos básicos. Essa é a primeira aula do curso online de Introdução ao Feminismo oferecido pela Rede Brasileira de Mulheres Filósofas sob a organização de Rita Machado (UEA). Veja o programa de curso e a bibliografia em http://www.filosofas.org/cursofeminismo Assista aqui. Ilze Zirbel é formada em História e Teologia, com mestrado em Sociologia Política e doutorado em Filosofia. Atualmente faz seu pós-doutorado em Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina e participa do projeto “Uma filósofa por mês”. Questões e teorias feministas têm sido seu fio condutor em meio a interdisciplinaridade de sua trajetória, com ênfase em Ética, Teoria Política, História da Filosofia e Epistemologia. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8740728758861601 Assista a aula aqui. #redebrasileirademulheresfilosofas #filosofasOrg #filosofasbrasil #introducaoaofeminismo #ilzezirbel

  • Mulheres, raça e classe: a pandemia aprofundando desigualdades

    Ao contrário do que pensa Giorgio Agamben, a sociedade acometida pela pandemia não é uma "massa compacta e passiva"* , mas composta por pessoas portadoras de distintos marcadores sociais e que vivem os efeitos da pandemia em conformidade com as distintas maneiras pelas quais interseccionam classe, raça e gênero, etnia, sexualidade, idade. Levando em consideração que as sociedades capitalistas, machistas e racistas são profundamente desiguais em termos de classe, gênero e raça, eu proponho na live com o Mario Vitor Santos (link abaixo) uma reflexão sobre a pandemia no Brasil a partir daí, ou seja, a partir das desigualdades e violências já existentes. Como a pandemia e a necessidade (inconteste) do isolamento social impacta a vida das mulheres em geral, se sabemos que o trabalho de reprodução social é profundamente mal dividido em detrimento das mulheres? Como a pandemia e o (necessário) isolamento social impacta a vida das mais de 57 milhões de mulheres chefes de família (ou seja, de cuja renda depende o sustento da família)? E se levarmos em consideração que 57% das famílias chefiadas por mulheres estão abaixo da linha da pobreza, das quais 65% são chefiadas por mulheres negras. Como a pandemia afeta a vida das 5,7 milhões de empregadas domésticas, das quais 3,7 milhões são negras e pardas? E se lembrarmos que 50% do trabalho no Brasil é informal e que as mulheres são maioria na informalidade? Vamos falar das mulheres mais afetadas pelo necessário isolamento social: as que precisam do dia de trabalho para alimentar a família inteira. Se levarmos em consideração a violência doméstica, veremos que o isolamento social significa para muitas mulheres o convívio 24h com o seu abusador ou provável assassino. Só em SP o número de mulheres assassinadas em casa neste último mês de isolamento social dobrou: dobrou! Ou seja, a pandemia e as maneiras necessárias de controlá-la não são sentidas e vividas da mesma maneira sem distinção de gênero, raça e classe, pois precariza vidas já precárias (Judith Butler) e expõe todas as incapacidade do neoliberalismo em garantir o básico para a maioria das pessoas (Angela Davis). Convencida de que é muito difícil pensar na tempestade e de que os significados, que a filosofia procura, precisam de tempo e distanciamento para aparecer, resigno-me por ora a um exercício de pensamento em diálogo com as outras ciências - médicas, sociais, econômicas - e ancorado em experiências concretas de vida. A filosofia prática - política e ética - que se furta à concretude é mera especulação vaidosa, mais preocupada consigo mesma do que com o mundo que diz tentar explicar. PS: Loiane Prado e Giovana Facciola, em breve trago aqui um texto para dialogar com o de vocês (https://www.filosofas.org/post/a-pandemia-do-novo-coronav%C3%ADrus-e-a-leitura-de-giorgio-agamben) sobre os artigos do Agamben publicados na Quodlibet sobre a (invenção da) pandemia. *Conferir artigo publicado por Agamben no dia 06 de março, o segundo dos cinco artigos que ele publicou sobre a (invenção da) pandemia https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-distanziamento-sociale.

  • A pandemia do novo coronavírus e a leitura de Giorgio Agamben

    Giovanna Faciola Brandão de Souza Lima Mestranda em Direito do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito. Loiane Prado Verbicaro Professora da Faculdade de Filosofia e do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito. O Grupo de Pesquisa (CNPq) “Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito,” vinculado à Faculdade de Filosofia e ao Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA), tem se mobilizado para refletir, à luz das discussões das autoras e autores, bem como de temas que norteiam as nossas pesquisas, sobre aspectos sociais, políticos, econômicos e filosóficos desse momento disruptivo nas nossas vidas. Agradecemos à Rede Brasileira de Mulheres Filósofas pela abertura desse espaço dialógico, democrático e plural para pensarmos nos problemas do nosso tempo e, ao mesmo tempo, pela visibilidade ao trabalho desenvolvido pelas mulheres na Filosofia, em todos as regiões, recantos e universidades do país, permitindo tantas conexões e parcerias. O tema de hoje discute algumas provocações do pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben sobre a pandemia, que tem suscitado tanta polêmica e discussão. Giovanna Faciola, que assina o presente texto, é também orientada pelo professor e amigo Ricardo Evandro Martins, professor do PPGD da UFPA, que tem sido um dos principais estudiosos de Agamben no nosso Estado e a quem agradeço pela parceria acadêmica. Passemos às nossas reflexões. Em tempos de novo coronavírus, as atenções se voltam para as medidas adotadas pelos governos a fim de superar a atual crise e seus impactos no âmbito social, político, sanitário, ambiental e econômico. O isolamento social foi tido, por grande parte dos Estados, como a principal maneira de combater a proliferação do vírus, trazendo, portanto, mudanças no cotidiano da população de vários países. Estudantes tiveram que se adaptar ao ensino a distância através das plataformas online; o home office foi a estratégia adotada por muitas empresas públicas e privadas; a instalação do toque de recolher; medidas de suspensão de venda e consumo de bebidas alcoólicas; prisão; e multa para quem sair de casa injustificadamente acenam a uma nova normalidade. Nesse contexto, o filósofo italiano Giorgio Agamben chamou atenção ao equiparar a COVID-19 a uma gripe comum, ou, como ficou conhecida na irresponsável fala do Presidente do Brasil, a uma “gripezinha”. Autor do imponente projeto Homo Sacer, onde desenvolve questões envolvendo a vida nua, soberania, biopolítica e estado de exceção, Agamben considerou que o novo coronavírus seria um exagero ou mesmo uma invenção do governo, uma espécie de estratégia para justificar e homologar medidas excepcionais de incremento de um estado policialesco. Para entender sua declaração, é preciso compreender e se remeter à teoria do autor de que o estado de exceção se tornou o paradigma de governo dos Estados contemporâneos, inclusive democráticos, que coexistem com seu inimigo mais aguerrido, que são os estados de exceção. O que antes era utilizado como solução provisória frente às situações de perigo, tornou-se a regra por intermédio do controle da vida nua. Esse controle consiste na inclusão da vida natural nos cálculos e estratégias do poder estatal. A partir disso, o Estado controla nossa vida nua através de suas normas e, assim, o estado de exceção persiste e se legitima. A perda de seu caráter temporário se dá pela normalização de situações e medidas excepcionais. Isso pôde ser visualizado no contexto da luta contra o terrorismo, que ocasionou a implementação de medidas de controle e segurança, fazendo com que cada cidadão fosse considerado um terrorista em potencial. Contudo, com o esgotamento do terrorismo como justificativa de medidas excepcionais, Agamben considera que a invenção de uma pandemia seria a melhor forma de se ampliar e legitimar tais medidas. O fato de o mundo já ter passado por epidemias graves, mas que não ocasionaram a declaração de um estado de emergência e seus corolários às restrições à liberdade, como ocorre no contexto atual, é considerado pelo filósofo como indício de que vivemos em uma crise inventada. Ademais disso, na era neoliberal, onde o mercado se tornou a prioridade, parece difícil acreditar que as preocupações governamentais e suas ações incisivas no combate ao vírus estejam focadas na centralidade do valor da vida. Importante mencionar que a declaração polêmica de Agamben ocorreu ainda no início da pandemia, num período em que as regras de isolamento na Itália ainda estavam sendo flexibilizadas. À luz das evidências atuais, tal percepção parece equivocada. Esse é o risco da escrita no calor dos acontecimentos. Nada melhor do que o distanciamento histórico para reflexões mais cautelosas e amadurecidas. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS), após projeção mais tímida sobre a nocividade do novo coronavírus, retratou-se e elevou o status de “moderado” para “elevado” o risco internacional do COVID-19 ao perceber os reais perigos da doença. Após um mês da referida declaração, o filósofo italiano também posicionou-se de forma mais cuidadosa. Agamben atenuou seu posicionamento anterior ao dizer que os governos não necessariamente precisariam produzir a situação de exceção, mas explorá-la. De qualquer forma, a pista que o filósofo nos acena é bem interessante. Ele problematiza aspectos da pandemia que normalmente naturalizamos, a exemplo das restrições à liberdade. Aceitamos docemente tais medidas. Estamos dispostos a abrir mão de nossas rotinas, relações sociais e do contato com nossos afetos para não correr o risco da contaminação e acabamos normalizando tais restrições, convertendo a exceção em imperceptível estado permanente. Naturalizamos a vida em condições de crise e de emergência. Sacrificamos nossa liberdade em nome da segurança. Nesse contexto, Agamben alerta-nos sobre o risco do incremento de políticas totalitárias, que podem instrumentalizar o COVID-19, a exemplo dos poderes extraordinários concedidos ao Primeiro Ministro da Hungria, para a implementação de políticas de isolamento e outros mecanismos de controle que poderão continuar sendo adotados mesmo no pós crise. Assim, é o momento de refletirmos e sermos vigilantes à eventual manutenção desses dispositivos, para que possamos resistir à ampliação dos tentáculos do poder e à conversão da exceção à condição de normalidade naturalizada, como nos provoca Agamben. #redebrasileirademulheresfilosofas #filosofasOrg #filosofaemquarentena #estadodeexceção #Agamben REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo horizonte: Editora UFMG, 2002. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. AGAMBEN, Giorgio. La invención de uma epidemia. In: Sopa de Wuhan: Pensamiento Contemporáneo en Tiempos de Pandemias. Buenos Aires: Pablo Amadeo Editor. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020. AGAMBEN, Giorgio. « L’épidémie montre clairement que l’état d’exception est devenu la condition normale . Le Monde, 24 de março de 2020. AGAMBEN, Giorgio. Una domanda. In: Quodlibet, 13 de abril de 2020.

  • (Re) pensar a divisão sexual do trabalho em tempos de pandemia

    Adriana Souza Simões Mestranda em Educação do Programa em Linguagens e Saberes da Amazônia da Universidade Federal do Pará, integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito e do Grupo de Pesquisa: Núcleo de Estudos em Educação, currículo, formação de professores e relações étnico-raciais (NEAFRO). Loiane Prado Verbicaro Professora da Faculdade de Filosofia e do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará. Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito. A pandemia expõe a precariedade da vida, mas, ao mesmo tempo, a maior vulnerabilidade das pessoas já afetadas pelas nossas assimetrias históricas e estruturais. Ela nos afeta a partir das nossas vicissitudes, agravando-as. A pandemia não cria, mas desnuda, com novas lentes e tintas mais nítidas, os problemas da divisão sexual do trabalho. É um fato que a vida de todos sofreu mudanças disruptivas em decorrência da pandemia de COVID-19 e, com isso, surge a necessidade de adequação ao novo e de conciliação desta nova forma de viver com as mais variadas preocupações sociais, não apenas com os rumos futuros da economia e da saúde. Com a crise sanitária sem precedentes e a recomendação de isolamento social, os problemas da divisão sexual do trabalho são escancarados, levando-nos a (re) pensar a importância da persistência da luta feminista pela igualdade. O momento acentua as consequências das forças conservadoras que cultivam um apego a uma história mítica, na defensa de uma sociedade hierarquizada e patriarcal, que promove uma demonização às questões de gênero e a tantas outras pautas sociais e inclusivas, com o reforço de que as mulheres devem assumir, em razão de um dom natural, o dever do cuidado tanto no lar quanto na sociedade, o que reforça as desigualdades de gênero, merecendo uma reflexão especial desses desequilíbrios naturalizados. É urgente trazer à tona, em tempos de crise sanitária, o debate de gênero e a noção de “papel da mulher” para que se possa desmistificar o que se nomeou como trabalho, competência e lugar de mulher para evidenciar as consequências dessas divisões impostas. Federici (2017, p. 52-53) demonstrou que, historicamente, nas sociedades pré capitalistas a divisão sexual do trabalho apresentava-se com menos evidência, pois as mulheres exerciam tanto as atividades agrícolas, quanto as domésticas e estas não eram desvalorizadas e nem socialmente diferentes das exercidas pelos homens. Com a economia monetária, o trabalho doméstico deixou de ser visto como verdadeiro trabalho, relegado à subvalorização e ao desprestígio. A divisão sexual do trabalho é a forma como as sociedades se estruturam e delegam funções para as mulheres, tendo por destinação colocá-las nos espaços privados exercendo funções como os afazeres domésticos e, dentre outras, o cuidado com os filhos e familiares, tarefas essas que são socialmente rotuladas e naturalizadas como “função de mulher”, as quais tem por consequência (e intenção) a liberação dos homens desses ônus, pois assim, cabe a eles, majoritariamente, o exercício de funções na esfera pública, ocupações de forte valor social agregado, a exemplo do exercício de lideranças religiosas, cargos militares e mandatos políticos. Desse modo, a sociedade capitalista se estrutura e consegue se desenvolver às custas do trabalho doméstico não remunerado exercido pelas mulheres, em conformidade com tal evidência, dados do IBGE (2019) revelam que as mulheres dedicam o dobro do seu tempo, em relação aos homens, exercendo afazeres domésticos, dedicando, em média, 21,3 horas por semana, em comparação às 10,9 horas exercidas pelos homens. Nesse sentido, embora evidenciada a desigualdade de gênero, é importante que se interseccionalize a reflexão para uma perspectiva a partir da raça e classe dessas mulheres que se dedicam ao trabalho doméstico. Dados do IPEA (2019) revelam que das 6,2 milhões de pessoas que exercem trabalho doméstico, 3,9 milhões são mulheres negras, as quais correspondem à 63% do total de trabalhadores domésticos no país. Os mesmos dados demonstram que a cada 100 trabalhadoras negras, 14 são jovens, ao passo que, entre as brancas, 11 são jovens, evidenciando que a saída é mais intensa entre as brancas, pois estas conseguem alcançar maiores níveis de escolaridade e melhores condições de emprego. Percebe-se, portanto, que o trabalho doméstico é alimentado pela desigualdade e pelo racismo estrutural, Davis (2016, p. 17) afirma que o enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos de escravidão. Diante da pandemia da Covid-19, a questão relacionada ao exercício de trabalhos domésticos suscita especialmente duas perspectivas de análise. A primeira, a evidência de que, em decorrência do racismo estrutural, o trabalho doméstico, no Brasil, é exercido em sua maioria por mulheres negras, pertences a classes econômicas inferiores e com índices de escolaridade baixos, de modo que, diante da necessidade de realizar o isolamento social recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e Ministério da Saúde, encontram-se em situações ainda mais difíceis, pois sem o exercício do trabalho, não conseguem receber seus salários e arcar com a subsistência própria e de seus familiares, tendo em vista que muitas exercem a profissão na informalidade, sem carteira de trabalho assinada – menos de 30% são formalizadas (IPEA, 2019) – ou exercem na modalidade de diaristas, as quais só recebem mediante a conclusão da jornada de trabalho. A segunda perspectiva é a que afeta as mulheres de classe média e alta, empregadoras, que precisam dispensar suas empregadas domésticas, passando então, a exercer as atividades domésticas que antes eram delegadas. Neste momento, a divisão sexual do trabalho também evidencia-se. Muitas mulheres se depararam com a necessidade de desempenhar múltiplas atividades, tais como a realização dos afazeres ligados à família, o cuidado com a casa, o auxílio nas atividades escolares dos filhos, dar conta de exercer sua profissão através do home office, com exigências de produtividade, dentre outras tarefas. A sobrecarga mental e laboral que incide na vida das mulheres intensifica-se nesse momento de crise epidêmica, pois as principais responsabilidades familiares, domésticas, relativas à economia do cuidado, ademais das dificuldades financeiras, aumento da violência física, psicológica e emocional, e do acúmulo de atividades profissionais, incidem, de modo desproporcional, sobre a mulher, fazendo com que elas sejam afetadas de forma brutal e silenciosa, como pontua Federici (2019, p. 40) “eles dizem que é amor, nós dizemos que é trabalho não remunerado”. #redebrasileirademulheresfilosofas #filosofasOrg #filosofaemquarentena #divisaosexualdotrabalho REFERÊNCIAS BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. BUTLER, Judith. El capitalismo tiene sus limites. In: Sopa de Wuhan: Pensamiento Contemporáneo en Tiempos de Pandemias. Buenos Aires: Pablo Amadeo Editor. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020. DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad.: Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad: Coletivo Sycorax. São Paulo: Editora Elefante, 2017. FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Trad: Coletivo Sycorax. São Paulo: Editora Elefante, 2019. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Os desafios do passado no trabalho doméstico do século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos casos da PNAD contínua. Rio de Janeiro: Ipea, 2019.

  • Sobre a vida privada das mulheres em quarentena

    O Estado de São Paulo está há quase um mês em quarentena por conta do avanço do #CoronaVírus no país. São Paulo aparece como o principal epicentro da pandemia neste momento e já registra mais de setecentos mortos pela Covid-19. A rotina da mais rica e maior cidade do país, por sua vez, foi completamente alterada pela quarentena. Nunca a cidade viu arrefecer dessa maneira a circulação de veículos, pessoas e mercadorias. Pelo menos duas coisas chamam bastante a atenção nesse contexto. Um fato negativo: o absurdo aumento no registro de violência contra a mulher no período. E um fato positivo: a significativa melhora da qualidade do ar em decorrência de uma diminuição recorde da poluição na Capital. A pandemia escancarou para os paulistanos e paulistanas dois problemas sobre os quais pouco conversamos, embora saibamos de sua gravidade. A vida das mulheres nunca foi tão difícil, e isso porque, é preciso salientar, ela jamais foi fácil... Acostumadas a enfrentar jornadas duplas de trabalho, as mulheres se viram drasticamente atingidas pela pandemia e também pela quarentena. As crianças estão em casa, fora da escola, e por isso demandam atenção e cuidado em tempo integral. Os idosos estão sob maior risco de vida, e cabe, na maioria dos casos, às mulheres dar conta da tarefa de zelar por eles. Aquelas que estão na linha de frente do combate à doença (médicas, enfermeiras, profissionais da saúde e da limpeza, funcionárias de farmácias e supermercados, entre outras) lidam agora com a presença do vírus e veem sua própria saúde e a de seus familiares postas em perigo adicional, seja porque essas mulheres têm de voltar para casa depois de um dia de trabalho em locais de grande circulação de doentes e de possíveis contaminados, seja porque tem de se afastar dos seus, isolamento que as impede de tomar conta destes pessoalmente, em nome da saúde pública. Como se não bastasse, a crise econômica atinge de maneira cruel os mais pobres, e isso não parece sensibilizar o poder público, o qual demora para dar assistência às famílias mais vulneráveis, a maioria delas chefiadas por mulheres. Por fim, houve um aumento significativo nos índices de violência contra a mulher no período. A reclusão ao lar fez com que muitas se tornassem alvo preferencial de companheiros, os quais não hesitam em descontar nas mulheres o estresse e o descontentamento gerado pela pandemia. Não há dúvida: as mulheres se veem agora terrivelmente atingidas pelo fenômeno, de modo que sua vida privada tem se revelado, não um refúgio para onde elas se recolhem para cuidar com tranquilidade daqueles que dependem da sua atenção, mas sim um local de trabalho sobrecarregado e perigoso. São Paulo, assim como a maioria dos lugares, tem vitimado as mulheres no processo de combate ao avanço da Covid-19 no nível da saúde física e mental, mas também em termos econômicos, sociais e relativos à segurança. A pandemia tem reforçado as tintas que colorem o sofrimento das mulheres e é urgente que medidas sejam tomadas no sentido de minimizar ou mesmo erradicar esses ataques a sua qualidade de vida e a sua própria sobrevivência. Ao olhar pela janela, contudo, paulistas e especialmente paulistanos e paulistanas têm se deparado com um novo horizonte, algo que os impele a refletir sobre o futuro pós-pandemia. O estilo de vida que adotamos até agora, o qual exige enormes deslocamentos de pessoas, gera um trânsito insano, responsável por roubar horas e horas diárias de muitos trabalhadores e trabalhadoras, e isso em meio a condições precárias de transporte, tanto individual quanto coletivo. Nosso trânsito é sem dúvida um problema de saúde pública, e não há mais como esconder esse fato. Ele põe em risco nossa saúde física e mental, além de tirar de nós preciosos momentos os quais poderiam ser desfrutados na companhia daqueles que amamos e que dependem da nossa presença. Ver, depois de semanas de quarentena, fechados em nossos lares, o céu da cidade limpo, o que permite observar as estrelas à noite, é um acontecimento que tem nos espantado. Nós, que estamos acostumados ao céu nublado pela poluição, e que nunca temos tempo para contemplar qualquer coisa, nos dedicamos agora a essa nova possibilidade: contemplar os astros que invadem nossas janelas e varandas. Dos edifícios, e também das casas, os paulistanos e paulistanas fotografam a novidade e espalham seus registros pelas redes sociais. O céu nos ajuda literalmente a suportar o isolamento e suas consequências. Essa visão nos indica um caminho a seguir: começamos limpando o céu, para que a cidade lá fora possa nos ofertar novas cores, sons e aromas. Não nos esqueçamos, porém, de aliviar as tensões que rondam a vida privada das mulheres: que elas também possam desfrutar no futuro de uma nova cidade, preocupada com o cuidado daquelas que socialmente geram e suportam a vida.

  • Os dispositivos biopolíticos e o paradoxo das (in)certezas futuras

    Paloma Sá Souza Simões Mestranda em Direito do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará, integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito e do Grupo de Pesquisa (CNPq): Centro de Estudos sobre Instituições e Dispositivos Punitivos - CESIP-MARGEAR. Loiane Prado Verbicaro Professora da Faculdade de Filosofia e do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará. Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito. Embora as discussões a respeito da pandemia ocasionada pelo Covid-19 terem se concentrado sob a perspectiva dos conflitos entre economia e saúde, o momento coloca em pauta, como afirma Maristella Svampa (2020), a importância de grandes debates sociais em torno da crise. É o momento de refletirmos amplamente sobre as desigualdades de gênero, raça, classe, os problemas ambientais, as políticas neoliberais, o capitalismo e suas nuances. Nesse contexto, destacamos a importância de discutirmos as questões biopolíticas que o atual contexto nos impõe. Ainda na década de 1970, Foucault já chamava atenção para a sua hipótese de que o poder moderno é o da biopolítica, de controle da população, e que os dispositivos disciplinares individuais não se mostravam mais suficientes para controlar os corpos, fazendo-se necessário o surgimento de novas tecnologias capazes de potencializar o controle da vida biológica que havia se tornado objeto da política. A biopolítica, portanto, é um poder que se utiliza de um viés estatístico e visa à intervenções preventivas para garantir o controle das populações. Não se trata de considerar o indivíduo na sua particularidade, mas de considerá-lo em uma escala global e “de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação” (FOUCAULT, 1999, p. 294), a qual visa a eliminação dos riscos e a garantia da segurança. Na atual crise exposta pela pandemia observamos o uso de diversos dispositivos biopolíticos, como as medidas de exceção, no intuito de conter o avanço da doença. Muitos países decretaram estado de emergência ou de calamidade pública, como o Brasil, o que possibilitou com que seus governantes adquirissem amplos poderes e pudessem adotar medidas excepcionais, inclusive, no sentido de limitação dos direitos fundamentais à liberdade de locomoção e manifestação, todas essas ações fundamentadas na garantia da segurança da população visando o impedimento do avanço dos casos de Covid-19. Medidas como a de monitoramento do distanciamento social por meio do rastreamento de dados telefônicos, como foi implementada pelos governos de Hong Kong, China e Israel, a implementação do toque de recolher em países como Chile e Itália, a utilização do aparato burocrático estatal para aplicação de multas àqueles que violam a quarentena obrigatória, como realizado pela França, a isenção de responsabilidade penal por uso de armas letais pelas forças de segurança em resposta à desobediência civil do toque de recolher, como efetivado no Peru e a ameaça de prisão aos que estiverem realizando aglomerações em desconformidade com a quarentena, como determinado pelo governador de São Paulo, são apenas alguns exemplos de ações emergenciais adotadas pelos países sob a justificativa de serem mecanismos aptos na contenção do avanço do coronavírus. A pandemia vivida explicita a atualidade do pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben sobre a exceção como dispositivo biopolítico. Agamben tem se manifestado sobre a pandemia do coronavírus e os riscos de ampliação dos tentáculos do poder avassalador do Estado, com a possibilidade de normalização do estado de exceção. Exemplo emblemático de suas ideias foram os poderes extraordinários concedidos ao Primeiro Ministro da Hungria, Viktor Orbán, um aliado ideológico do governo do Presidente do Brasil. Conforme alerta Agamben, governos com traços autoritários podem fazer uso de uma emergência para consolidar a escalada rumo à ditadura. Pode-se inclusive vislumbrar um regime policialesco a partir da vigilância biopolítica digital, nos moldes chineses, convertendo a excepcionalidade da situação em estado de exceção permanente e normalizado, uma espécie de panóptico que confina a população a viver trancada e sob forte vigilância. Nesse sentido, um olhar cauteloso em torno dos dispositivos biopolíticos nos revela que eles possuem uma relação paradoxal. Enquanto mecanismos que apresentam soluções rápidas e eficazes no combate ao avanço da pandemia, eles passam a ser vislumbrados como legítimos e a sua existência se torna necessária para a sua utilização em emergências futuras e, inclusive, em situações de “normalidade”, em nome da segurança pública. Concomitantemente, eles requerem uma atenção especial, pois são medidas excepcionais invasivas nos direitos e liberdades individuais que proporcionam a ampliação dos poderes dos governantes, os quais, se mal intencionados, podem se aproveitar da oportunidade para empregar uma política mais autoritária. Nesse sentido, uma vez identificado o sucesso da utilização dessas técnicas para a contenção da pandemia e do controle dos indivíduos em distanciamento social, muitos governantes podem sentir-se legitimados a realizar a utilização destas mesmas técnicas no futuro próximo, buscando a todo instante encontrar justificativas e razões para, em nome da segurança, se revestir dessa excepcionalidade e colocar em prática os dispositivos. Por isso enfatizamos a necessidade de reflexão sobre as relações futuras dos governos com esses dispositivos biopolíticos postos em prática durante esse período de pandemia. Se as hipóteses agambenianas estão certas “a forma da relação direito-vida é sempre soberana e é sempre biopolítica e funciona, como já identificado por Schmitt, através do paradoxo da exceção” (BAZZICALUPO, 2017, p. 98). Desse modo, a soberania permanecerá realizando buscas constantes para exceder os seus limites, sob a justificativa de urgência da proteção da vida, e controlar, por meio da relação de exceção, as vidas nuas, ao mesmo tempo em que “o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea” (AGAMBEN, 2004, p. 13). Uma vez atingido o sucesso desses dispositivos no controle da contenção da pandemia, não se torna impossível o seu uso e êxito no controle futuro da cidadania, na utilização dessas medidas excepcionais para o impedimento de mobilizações e reivindicações sociais, ampliação de medidas de segurança para, cada vez mais, realizar o controle dos corpos e relativizar o exercício das liberdades individuais, tudo em nome da garantia de segurança à vida da população. Quando Agamben (2020b, p. 255) afirma que nós nos acostumamos a viver em situações de crise e emergência permanente e não percebemos que a nossa vida se tornou uma condição apenas biológica, perdendo a sua dimensão social e política, e aceitamos o sacrifício da nossa liberdade por razões de segurança, no nosso entender, é um alerta feito pelo autor para a maneira como temos lidado com as questões políticas, com a constante despolitização dos referidos assuntos em decorrência da constante convivência com as decisões políticas baseadas na emergência, proteção e segurança das nossas vidas como se elas fossem a normalidade. Se essas hipóteses são verdadeiras, só o futuro e suas (in) certezas nos revelarão, enquanto isso nos cabe o papel de refletir sobre estas e muitas outras questões sociais que a pandemia nos explicita e de permanecermos atentas à importância da politização desses debates. #redebrasileirademulheresfilosofas #filosofasOrg #filosofaemquarentena #biopolitica REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. La invención de uma epidemia. In: Sopa de Wuhan: Pensamiento Contemporáneo en Tiempos de Pandemias. Buenos Aires: Pablo Amadeo Editor. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020a. AGAMBEN, Giorgio. Aclaraciones. In: La fiebre. Buenos Aires: Pablo Amadeo Editor. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020b. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad.: Iraci D. Poleti. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2004. BAZZICALUPO, Laura. Biopolítica: um mapa conceitual. São Leopoldo (RS): Ed. Unisinos, 2017. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Trad: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. SVAMPA, Maristella. Reflexiones para um mundo post-coronavirus. In: La fiebre. Buenos Aires: Pablo Amadeo Editor. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.

  • Introdução ao Feminismo no lançamento do nosso novo canal

    Nosso curso online de Introdução ao Feminismo teve 2880 inscritos para 90 vagas. Nós transformamos a dificuldade em oportunidade e vamos divulgar as aulas em nosso novo canal. Sabemos que nada substitui uma sala de aula, mas essa foi a melhor alternativa que conseguimos nessa circunstância. As aulas serão disponibilizadas tão logo seja tecnicamente possível. Inscreva-se no nosso canal para receber uma notificação da publicação. Conheça aqui o nosso novo canal Para visualizar a lista de inscrições homologadas, clique aqui. #redebrasileirademulheresfilosofas #filosofasemquarentena #intruducaoaofeminismo #filosofasOrg

  • Tomar posição diante das imagens

    Juliana de Moraes Monteiro Doutora em Filosofia pela PUC-Rio. Atualmente, é bolsista nota 10 da FAPERJ, realizando Pós-doutorado em Filosofia sob a supervisão da Profa. Dra. Carla Rodrigues na UFRJ. As imagens dos caixões empilhados, das valas funerárias e as notícias de milhares de mortos sem direito a qualquer rito funerário que inundaram os noticiários, jornais e redes sociais durante a pandemia causada pelo Covid-19 impactaram sensivelmente os espectadores ao redor do mundo. A hipótese que elaboro aqui busca responder ao efeito dessas imagens: nessa leitura, proponho pensar que elas não nos atingem simplesmente porque revelam os acontecimentos do presente conferindo-lhes uma visão recortada de uma realidade catastrófica. Ao contrário, o que há de angustiante nessas imagens é que nelas se inscrevem coisas impossíveis de dizer. Um excesso, algo em torno do qual a linguagem orbita, sem nunca conseguir enunciar totalmente, como uma falha alocada no cerne de sua formação. São imagens que podemos nomear como traumáticas, justamente porque apontam diretamente para o real, e o real vem para nos afetar de maneira mais cruel do que a própria realidade. O objetivo deste pequeno texto remete a uma convocação para se deter nessas imagens, não apenas porque elas são signos visuais que exprimem e narram a verdade tal como está acontecendo, mas porque elas são o testemunho de um trauma histórico do presente. Testemunhar não é proferir um discurso coerente, nem tampouco esclarecer ou demonstrar um conhecimento sobre algo que foi vivido. Ao contrário, na linguagem testemunhal está em jogo uma perda da linguagem, algo que não é comunicável ao outro e que permanece sem-forma no dizer. A respeito do testemunho, o filósofo italiano Giorgio Agamben nos diz: Podemos dizer que dar testemunho significa pôr-se na própria língua na posição dos que a perderam, situar-se em uma língua viva como se fosse morta, ou em uma língua morta como se fosse viva. (...) A respeito de que tal língua dá testemunho? Porventura de algo – fato ou evento, memória ou esperança, alegria ou agonia – que poderia ser registrado no corpus do já-dito? Ou da enunciação, que atesta no arquivo[1] a irredutibilidade do dizer ao dito? Não enunciável, não arquivável é a língua na qual o autor consegue dar testemunho de sua incapacidade de falar. (AGAMBEN, 2008, pp. 169-161) No texto “Educação e crise: as vicissitudes do ensinar”, Shoshana Feldman relata a experiência de projetar vídeos do Fortunoff Video Arquive contendo testemunhos do Holocausto a sua classe de alunos para trabalhar questões como trauma, testemunho, narração e história. Como referências, ela trabalha em sala de aula autores como Freud, Camus e, principalmente, Paul Celan, o poeta que, junto com Primo Levi, se converteu em uma das grandes vozes testemunhais do universo concentracionário. Após a experiência de assistir às imagens dos testemunhos com os alunos, Feldman recria o texto da “Palestra de Bremen” de Celan, que havia sido lido na sala de aula durante o curso. De acordo com ela, os alunos vivenciaram uma “perda da linguagem" (FELDMAN, 2000, p. 63), lidaram com o sentimento de que “a linguagem era inadequada” (Ibidem, p. 63) e sentiram uma espécie de “desconexão” (Ibidem, p. 63). O que ela tentava transmitir para os alunos é que é “precisamente desta perda que Celan fala, esta perda para a qual todos nós fomos, de alguma forma, feitos para viver” (Ibidem, p. 63). É preciso sublinhar que essa perda estrutural, para a qual nós mesmos fomos feitos para viver, diz respeito ao transbordamento evocado pelo mecanismo traumático. Assim, há algo de suspenso na linguagem, sobre o qual é possível falar ou não falar, que põe em xeque a pressuposição de que há uma conjunção perfeita entre o plano do significado e o do significante, por meio da qual a linguagem operaria sem falhas garantindo o sentido e a conciliação harmônica na comunicabilidade. Esse domínio da linguagem no qual experimentamos um desamparo traumático, em que ficamos nus e expostos ao fora da linguagem, é o que, nas palavras do próprio Celan, pode ser evocado pela expressão das “mil escuridões dos discursos que trazem a morte” (CELAN apud FELDMAN, 2000, p. 63). Como na assustadora imagem do poeta, as imagens – pelo menos aquelas sobre as quais precisamos nos debruçar em um mundo saturado por imagens – também são inadequadas, como se também uma escuridão terrível as assombrasse. Como o filósofo Georges Didi-Huberman escreve em Quando as imagens tomam posição, elas têm um “excesso de conhecimento” (DIDI-HUBERMAN, 2017 p. 237) que não deve ser entendido apenas no sentido positivo da transmissão histórica de algum conteúdo que pode ser facilmente assimilado, mas justamente o oposto disso: enquanto excesso, elas expressam sempre um resto que não pode ser domesticado pelo discurso. Quando nos colocamos diante da imagem para vê-la, ela também nos olha, e na distância entre o olhante e o olhado se produz uma perda, que é sempre traumática para o sujeito e fonte de mal-estar. Quando eu olho para as imagens excessivas da morte causada pelo Covid-19, eu não vejo apenas aquilo que se apresenta como visível, mas me exponho à ameaça das mil escuridões sobre a qual fala Celan, escuridão que, mesmo sem recursos de uma ordem estabelecida – uma vez que ela não mais existe –, nós teremos de atravessar. Como afirmou o filósofo camaronês Achille Mbembe em texto publicado durante essa semana sobre a epidemia de coronavírus que acomete o planeta, “nunca aprendemos a morrer” (MBEMBE, 2020, n.p), o que quer dizer simplesmente: é desde sempre urgente nossa responsabilidade ética com tal aprendizado. [1] Nessa passagem, Agamben faz referência a uma discussão desenvolvida previamente a respeito do conceito de arquivo que, segundo ele, seria oposto ao conceito de testemunho. O filósofo está dialogando sobretudo com o Foucault de Arqueologia do saber, ao afirmar que “entre a memória obsessiva da tradição, que conhece apenas o já dito, e a demasiada desenvoltura do esquecimento, que se entrega unicamente ao nunca dito, o arquivo é o não-dito ou o dizível inscrito em cada dito”, ao passo que o testemunho é “o sistema de relações entre o dentro e o fora da langue, entre o dizível e o não-dizível em toda língua – ou seja, entre uma potência de dizer e a sua existência, entre uma possibilidade e uma impossibilidade de dizer”. No sentido da proposição filosófica de Agamben, enquanto o arquivo se inscreve na modalidade do possível ou do impossível, o testemunho, enquanto atravessa por uma potência ou impotência do dizer, pertence ao campo da contingência. Justamente por isso, ele diz mais à frente: “o testemunho é uma potência que adquire realidade mediante uma impotência de dizer e uma impossibilidade que adquire existência mediante uma possibilidade de falar." Na articulação que proponho no texto, as imagens não pertenceriam à dimensão arquivística, mas sublinhariam a condição de testemunhas do evento, justamente porque elas não são compreendidas apenas como meras evidências visuais de um fato (Cf. AGAMBEN, 2008, pp. 145-146). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. DIDI-HUBERMAN, George. Quando as imagens tomam posição. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017. FELDMAN, Soshana. ““Educação e crise: as vicissitudes do ensinar”. In: NESTROVSKY, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo, Escuta, 2000. MBEMBE, Achille. “ O direito universal à respiração”. Tradução de Mariana Pinto dos Santos e Marta Lança. Disponível em: https://www.buala.org/pt/mukanda/o-direito-universalrespiracao?fbclid=IwAR3zWof4fMjXC3MrWKxdAbm1VwuetzG2YsjyObPW-Egc1ioGKZb4SvTtyIA. Acesso em 10 de abril de 2020.

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